Crítica | Cinema

As Múmias e o Anel Perdido

Andando como os egípcios

(Mummies, ESP, EUA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Animação
  • Direção: Juan Jesús García Galocha
  • Roteiro: Jordi Gasull, Javier López Barreira
  • Duração: 85 minutos

Eu tenho lido e vivido muito o medo. Não aquele medo básico, de um animal ou de uma situação de perigo, mas um medo mais ancestral e psicológico, diria até mais fácil de encontrar no ser humano: o medo de vencer. É fácil lidar com a perda quando não temos nada, quando não há o que ser tomado, quando nossa realidade é a da ausência. O medo do êxito é até difícil de compreender, a princípio, afinal todos nós queremos algo, desejamos firmemente um propósito – o que fazer quando se conquista um sonho que nem se imagina, como acoplar à nossa vida uma novidade que não existia? Thut, o protagonista de As Múmias e o Anel Perdido, animação espanhola que já está em pré-estreia, demora a perceber que esse é o seu maior medo. Ele já teve tudo, e perdeu… ao estar prestes a recuperar, como não temer novas derrotas?

É um temor, crê o crítico, adentrar também um universo que não se conhece. Uma “animação espanhola”; quantas já vimos, e quantas delas se destacou? Vivemos regidos pela Disney/Pixar, pela Illumination, pelo Studio Ghibli, pela Aardman, ou seja, gigantes do entretenimento que tentam a todo custo não nos decepcionar. Ainda que o façam vez por outra, é uma dieta fácil de consumir porque sabemos exatamente o que iremos encontrar dentro de cada uma dessas propostas. Aceitar a imprevisibilidade (sempre lembrando que todos os dias estamos fazendo escolhas, isso inerente ao ser humano) é aceitar que algo inesperado como As Múmias e o Anel Perdido possa cumprir um papel que a animação vem fazendo com conforto, saindo em busca de uma forma de contar histórias que não seja a esperada. 

As Múmias e o Anel Perdido
Warner Bros. Pictures

Juan Jesús (ou JJ) García Galocha estreia na direção aqui, depois de passar pela equipe da franquia As Aventuras de Tadeo, em um trabalho que também se aproxima dessa tentativa de transformar o que se viu na infância em algo vibrante de hoje. A abertura de As Múmias e o Anel Perdido nos coloca diretamente em contato com Ben-Hur e sua clássica corrida de bigas, o que carrega mais uma vez essa magia das memórias de infância que o autor quer comungar hoje. Ao contrário do que possa imaginar, filmes como A Múmia não são uma referência forte aqui, mas surpreendentemente duas representações inesperadas estão em cena e não são tão aproveitada quanto gostaríamos, O Show de Truman e A Vila, e sua realidade artificial que é absorvida como o único modo de vida possível. Fica na superfície o tanto de possibilidades que a ‘cidade das múmias’ traria para uma narrativa ainda mais suculenta. 

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O que impressiona em As Múmias e o Anel Perdido não é apenas o carisma que todos os personagens têm, mas o senso de organização do material, que não é pequeno. Visando o maior público possível, a ação por trás da produção é praticamente ‘non-stop’, e ainda assim o filme consegue coadunar tudo que precisa falar com um mínimo de coesão. Como, além de tudo, trata-se de uma duração muito apertada, é louvável o que é entregue, porque a ambição é alta em tratar de um sem número de temas. Vai da efemeridade do sucesso ao contraste entre o velho e o novo, o clássico e o moderno, passa pela eterna busca pelo livre arbítrio – aqui, a discussão chega a uma protagonista feminina que luta por empoderamento e por uma liberdade nunca antes sequer sonhada. Além da alegoria para o medo que abre esse texto, o filme corresponde a esses excessos da melhor forma possível. 

Acima de tudo, ainda que o roteiro de Jordi Gasull e Javier López Barreira não se pretenda transformar esse título de intenções pop em uma salada de reflexões conceituais-filosóficas para iniciados, As Múmias e o Anel Perdido também agrega valor a sua diversão com o que pode fazer o adulto pensando na saída da sessão. É um programa que não embarreira seus significados a ninguém do público presente, e mesmo que as ideias não precisem ser tão cobradas assim, nada fica muito pelo caminho no sentido da coerência cinematográfica; ao menos não tanto quanto já presenciamos. É, no calor dos acontecimentos, uma pedida bem acabada, tanto estética quanto narrativamente em um cenário de exceções onde o filme tenta criar uma clareira possível de novas percepções. 

As Múmias e o Anel Perdido
Warner Bros. Pictures

O filme também reconhece o poder da catarse, ao se acessar emoções genuínas acessadas através da memória e da sedução. Às crianças, temos o pequeno Sekhem e seu filhote de crocodilo de estimação, além das cores exuberantes de uma Londres cosmopolita; aos adolescentes, temos a narrativa da jovem que decide lutar pelos seus sonhos como cantora, explodindo na internet – o lugar onde, cada vez mais, são descobertos novos talentos. E aos adultos, o reencontro com o Bangles cantando uma música óbvia para algo que se baseia no Egito, e o retorno do Nickelback, que sempre foi tratado como farofa, mas que a distância de seu sucesso nos coloca outra perspectiva a respeito do que acessamos quando, hoje, os ouvimos. Ou seja, o pacote de acessos é praticamente completo, onde não falta ainda momentos onde a comicidade é inevitável.

As Múmias e o Anel Perdido não é um filme que quase se abstenha do público infantil, como Divertidamente ou O Conto da Princesa Kaguya, mas é um filme que promove sim diversão alucinada com uma ideia de aproveitar os sentidos, e não ter medo de ser feliz. Dias cínicos ou melancólicos como os nossos promoveram um individualismo que não está sendo bem dosado; quando a felicidade bate à porta, tenha mais medo de perder do que de ganhar. Não importa se você já foi um herói e disse a si mesmo que jamais cederia ao amor, existem poucas coisas mais recompensadoras do que rever conceitos. Thut e Nefer, juntos, percebem que não precisam perder nada para ganhar um ao outro; a revolução começa quando entendemos que também precisamos ceder ao encontro. 

Um grande momento

‘Aida – O Musical’

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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