- Gênero: Drama
- Direção: Nathália Tereza, Tomás Osten
- Roteiro: Nathália Tereza, Tomás Osten, Cássia Damasceno
- Elenco: Cássia Damasceno, Nina Ribas, Karina Flor, Gil Baroni, Alexandre Canetta, Ana Paula Málaga, Renato Novaes
- Duração: 60 minutos
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As trajetórias de Nathália Tereza e Tomás Osten se paralelizam a tal ponto, que faz sentido sua estreia em longa metragem acontecer conjuntamente, aqui em Solange. De muitas formas, é o filme possível vindo de ambos, e desse filme possível também podemos afirmar que é o filme necessário a nascer dessa parceria de muito tempo. Juntos ou separados, ambos se refletem aqui nessa narrativa que, como seus trabalhos anteriores, parte de algo aparentemente simples para povoar de cinema um grupo de eventos rápidos envolvendo sua protagonista. Com um dispositivo que remete a uma cinematografia naturalista, seus diretores entregam um dos filmes mais assustadores a passar pela Aurora em 2023.
Essa já é uma abordagem presente nas obras anteriores de ambos, tais como A Outra Margem (de Tereza) ou Chão de Rua (de Osten), onde um segmento específico é assolado por notas de fantasmagoria. Esse mesmo traço, que revela muito mais sobre o incômodo que passa – e provoca – sua protagonista, abre discussões sobre um filme de carpintaria delicada e, à primeira vista, de fórum íntimo. Na verdade estamos diante de uma peça fina sobre o que aprender com as retrospectivas diárias que fazemos, os balanços que não nos deixam escapar a uma análise mais apurada a respeito do que estamos certificando a nosso respeito.
Vide o estado de apreensão crescente no qual Solange se encontra a cada vez que está sozinha. Não é uma apenas uma representação da angústia de um reencontro desastrado, ou de uma realidade que não se deseja acessar, mais. É um estado de coisas paralisante, que provoca os piores sentimentos dentro da protagonista, constantemente entre o pânico e a fuga. Não há escapatória para a personagem, que precisa revisitar esqueletos não-enterrados, em uma comunicação apurada com Spencer; o passado como fonte de tortura auto imposta, para que se evolua e permita a chegada da resolução dos traumas. Solange é, em resumo apressado, como uma pequenina lanterna em busca da iluminação de reparações históricas.
Essa história, sem H maiúsculo, é uma resposta a um certo desamparo causado por uma herança de violência, estrutural ou não. Falando sobre casos dos mais prosaicos e mundanos, Solange reverbera mitos e posturas pertencentes à diminuição de dores de texturas prementes, mas que podem ser diminuídas por um olhar minimizador. Solange é uma mulher preta, que em meio a amigos brancos que a rotulam, segregam sua dor ou inferiorizam sua voz, tenta emergir em um lugar hostil ao que sua sobrevivência impõe. A protagonista é um totem de resistência que não é, em momento algum, depredada em seu lugar étnico, e está aí o pulo do gato, passando incólume pelo crivo racista – mas não se engane, a estruturação do regime é verdadeira.
É uma fabulação tipificada do horror, com arquétipos imagéticos que enclausuram a personagem no plano, e que utilizam o medo contante pelo qual essa mulher é submetida, Solange passeia por essa miríade de oportunidades, praticamente todas aproveitadas. Não deixa de falar sobre racismo de muitas ordens, enquanto investiga essa personagem que não tem passado ou futuro no campo; exemplifica uma nova visão do horror social oriundo dos males pandêmicos, sem deixar de compreender esse momento e solidão pelo qual estamos encarcerados. É uma mulher que precisa encerrar a conta de que foi posta como devedora, e o fará eliminando (da vida, ou para a vida) o que não mais lhe cabe. Solange é presa e caça, a um só tempo, e fará de seus algozes o trampolim para um novo começo.
Solange, acrescido do manancial de representação de imagens que possibilita e reconfigura como a peça cinematográfica que é, ainda conta com o auxílio luxuoso de Cássia Damasceno para encenar uma mulher que está exasperada pelo exterior. Em interpretação hipnótica, Cássia segura o que Tereza e Osten propõem a ela, o atravessamento dos poros para reescrever uma trajetória. Claustrofóbicos em sua ambição de coreografar como se comporta um corpo negro vítima de clausura severa, os diretores fornecem vasto material à sua atriz, que também ela representa todas as vielas apontadas no roteiro. Solange não é perfeita, e isso é mais um dado para nos fazer aproximar desses olhos, até a imagem borrar e desfocar de tão demasiadamente perto, compartilhando com ela os sonhos, os medos, a culpa, o desconhecido, o revide, o foda-se.
Um grande momento
Na moto com Solange
[26ª Mostra de Cinema de Tiradentes]