- Gênero: Documentário
- Direção: Maria Clara Escobar
- Roteiro: Maria Clara Escobar, Gildeane Leonina
- Duração: 97 minutos
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É fácil entender por que alguém decide filmar Gil. Há nela algo de magnético, um jeito de ocupar o mundo como se ele ainda pudesse ser reinventado. Gildeane Leonina é persona em estado bruto, artista antes de qualquer rótulo, criadora de canções e imagens. Seu corpo frágil desmente a potência da imaginação, e quem cruza seu caminho sente que há ali uma vida que merece ser contada. Porém, querer contar não basta. Explode São Paulo, Gil nasce desse desejo, legítimo e apaixonado, mas tropeça justamente onde deveria ser mais consciente: na fronteira entre admiração e captura, entre homenagem e uma perigosa apropriação.
Filmar alguém, em qualquer situação que seja, exige atenção extrema aos limites do outro. Se há qualquer situação de vulnerabilidade, ainda mais. E aqui está o ponto mais delicado do filme: ao colocar Gil no centro de tudo, a diretora Maria Clara Escobar parece crer que a convivência já é permissão suficiente. A relação entre as duas, marcada por afeto, mas também por desigualdade de classe e posição, não é – e nem nunca será – realmente enfrentada. O documentário assume uma suposta intimidade, mas não questiona em que medida essa intimidade é partilhada ou projetada. O risco ético não está em mostrar a dor, e sim em transformá-la em combustível narrativo sem encarar de verdade o abismo que separa quem filma de quem é filmado.
Em uma encenação equivocada, a diretora assume o cotidiano da documentada. Fracassando no exercício empático, a inversão de papéis tenta transformar Gil em condutora da narrativa, mas isso não passa de ilusão. A câmera se oferece como espaço de liberdade, como se bastasse estar ali para devolver poder. No entanto, quando a montagem escapa para delírios cênicos e pequenos jogos estéticos, o filme parece mais interessado em friccionar realidade e fantasia do que em escutar de fato. A performance de Gil é usada como dispositivo criativo, não como resutado de vontade. Ao suspender as responsabilidades sob a justificativa da criação, o filme se afasta da escuta.
É impossível ignorar que Gil vive entre estados físicos e psíquicos sensíveis. E é justamente esse cuidado que nunca se torna tema. Há insistência na persona, na figura exótica, no corpo errante, mas sua fragilidade nunca é interrogada. As cenas mais intensas causam estranhamento, como se o cinema buscasse linguagem antes de buscar ética. A vulnerabilidade de Gil, mesmo pedindo pausa, se torna material de espetáculo.
Ainda assim, Explode São Paulo, Gil é perturbador por razões que vão além de seus equívocos. Se ele expõe, mesmo sem querer, como o cinema pode oscilar entre cuidado e invasão; ou como a paixão por um personagem pode cegar; Gil, com toda sua grandeza e sua dor, continua maior que o filme. Ela cria mundos, inclusive dentro da própria imagem. Há momentos em que ela parece escapar da narrativa, olhar para além da câmera, como se dissesse: “isso não é sobre mim, é sobre vocês”.
O filme deixa a sensação de algo impossível de resolver. Não há absolvição nem linchamento. E, mais uma vez, o problema não está no desejo de filmar Gil. O que fica é a pergunta: como respeitar uma presença sem transformá-la em argumento? Como escutar uma vida sem transformá-la em discurso? Explode São Paulo, Gil não encontra essa resposta. Mas obriga a encarar a pergunta.
Um grande momento
O show de Gil


