- Gênero: Drama
- Direção: Todd Field
- Roteiro: Todd Field
- Elenco: Cate Blanchett, Noémie Merlant, Nina Hoss, Sophie Kauer, Adam Kopnik, Sylvia Flote, Mila Bogojevic, Mark Strong
- Duração: 158 minutos
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Lydia Tár é uma das maiores maestrinas do seu tempo. Premiada por onde passou (tem um EGOT, das raras pessoas a ter; Emmy + Grammy + Oscar + Tony), segue uma bem sucedida carreira como regente de orquestras – atualmente na Filarmônica de Berlim – um casamento estável e bem sucedido, uma filha pequena desse casamento com Sharon, e uma vasta rede de influência, prestígio e admiração. Está no topo da cadeia alimentar de sua área, a música clássica, e serve de inspiração para tantos ao redor do mundo. Lydia é também a protagonista de TÁR, o novo filme do bissexto Todd Field (de Pecados Íntimos), um retrato biográfico dos mais acurados a estrear em muito tempo, conseguindo abarcar tanta coisa nos seus breves 158 minutos (acredite: são breves) que é exaustivo até de enumerar, seus caminhos e suas divagações.
Lydia Tár não existe. Ela é uma figura ficcional criada pela mente de Field e trazida ao mundo por seu talento e o de Cate Blanchett, que não é nenhum exagero em ser chamada de A Maior de Sua Geração; é mesmo, com perdão às outras inúmeras e multitalentosas. Do lado dela, não há mais nada a provar, há alguns anos; do lado dele, subjetivamente, creio que ainda fosse preciso uma prova dos 9, após seus únicos dois longas anteriores – o primeiro, Entre Quatro Paredes. TÁR acaba com qualquer especulação, e nos abre a certeza de que, se alguma dúvida houvesse quanto às suas capacidades autorais, elas se dissiparam por completo aqui. Independente do que está sendo contado, o que chama mais a atenção é a forma empregada por Field para dinamizar algo, digamos, ‘indinamizável’.
TÁR tem muito a ensinar ao universo biográfico tradicional, pelas escolhas que faz, e pelo recorte que é feito de uma vida que, sutilmente, nos é informado como foi longa e sinuosa. Tudo em cena é informação importante, visual ou verbal, e precisa ser guardado pela memória – o elogio a uma bolsa, o nome ‘Linda’, o diálogo onde é dito ‘ela não era como nós’, tudo que está em cena tem precisão e não pode ser descartado. Ainda que pareça vago, em breve todas as coisas, por menores e mais prosaicas que pareçam, revelarão seus valores. São ideias aproveitadas por um gênero onde geralmente, nada é muito importante ou aproveitável; um filme como I Wanna Dance with Somebody, por exemplo, pode ser descartado por inteiro assim que se encerra.
Field não permite que isso aconteça com sua personagem, uma figura que, mesmo ficcional, possui múltiplos lados que são tratados de maneira crível pelo roteiro. Tár é, como tantos seres humanos, um dinossauro que não sabe que o futuro é a extinção. Ainda que sua voz esteja repleta de um desprezo inconsciente pelo que não lhe provém, a renomada compositora-regente é cercada de uma estrutura minimamente inclusiva. Suas ideias refletem uma sociedade igualitária quando ela se cerca de outras mulheres para continuar existindo, e apesar da influência de Leonard Bernstein, sua galeria de admiráveis é formada muito mais por figuras femininas. Nada disso impede Tár de corporificar o pior do poder, aquele que se julga tão onipotente que seus erros não são assimilados. E segue rumo ao abismo do hoje.
A direção de Field consegue criar momentos da mais absoluta tensão enquanto trata da construção de uma persona para o público. O horror contemporâneo do qual acaba por ser exposta sua protagonista é reflexo também das próprias ações horrorosas da mesma, uma mulher tão inalcançável que acaba por se tornar assustadora. TÁR é uma espécie de manancial de lava vulcânica, do qual sabemos da inatividade, e o quanto ela não é duradoura; um filme à espera de uma erupção premente. A montagem de Monika Willi (de A Fita Branca e Amor) nos assegura que essa ansiedade exasperante que emerge do filme esteja em cena o tempo todo, seja em preparativo ou explícita. É como um balé dançado coletivamente, onde nenhum integrante deixa diminuir sua grandeza, e cujos movimentos vão do mínimo ao máximo de maneira quase imperceptível, tornando o quadro geral indissociável em ritmo e controle – características também da protagonista.
Além disso há o trabalho sonoro em TÁR que retira a ambiência da mera discussão de autor, e insere o filme em um crescendo de horror, rememorando o que já fez pelo som autores como Apichatpong Weerasethakul. Constantemente a protagonista é assombrada por um mar de sonoridades que a lembram de sua fragilidade emocional, sua culpa não reconhecida, o horror de quem não tem consciência do mal propagado. Esse mal bate de volta na personagem, que não apenas produz sons fantasmagóricos como também os consome, frutos de uma exposição contínua ao pesadelo. Narrativamente, essa escolha de roteiro ainda contempla o que é estrutural em Tár – sua natureza essencial. É tudo um grande jogo entre a verdade naturalista do filme (que há, embora digam que não) e sua vocação para o cinema de gênero.
Tudo é construído em consonância com a construção monumental de Cate Blanchett, que parece sempre ter nascido para interpretar o que interpreta, mas aqui isso se redimensiona. Não pelo que vem sendo atribuído, mas exatamente pelo seu oposto. A grandiosidade que Lydia Tár imprime, na tela e na “vida”, é fruto de uma série de circunstâncias amplamente compreensíveis – sua posição, o lugar onde está inserida na música, o tamanho de seu reconhecimento – mas também cabem em cena sua versão íntima. Compactada em seu núcleo familiar, Tár também tem problemas mundanos, e esses dois mundos se enfrentam, para trazer a complexidade da personagem. Reside aí o monumento, no equilíbrio entre o esperado gigantismo e seu oposto, uma naturalidade oriunda do interior de uma discrição inesperada.
TÁR é definitivamente um produto de seu tempo, mas com pouca chance de errar, conseguimos observar sua relevância ainda por um período indeterminado, dada as luzes que ditam seus acontecimentos. Lydia Tár não é O Mal, mas faz parte de um ‘modus operandi’ que perpetua sua propagação por meio do jogo de influência, de uma soberba conseguida à sombra da onipotência, que faz com que os abusos de poder e o assédio moral sejam emudecidos pela certeza da impunidade. Field constrói uma parábola injetada de catarse, e o faz da maneira mais assustadora possível; sua mise-en-scene nos induz ao atrito por todo o tempo, o que lega à produção uma fricção constante. É desse emaranhado de questões, de uma direção superlativa e uma atriz que não cansa de subir audaciosos degraus rumo a sei lá onde a essa altura, que TÁR se coloca à parte de tudo que é lançado, esse ano ou em qualquer outro. Exemplar.
Um grande momento
O aquário, e seu reflexo