- Gênero: Suspense
- Direção: M. Night Shyamalan
- Roteiro: M. Night Shyamalan
- Elenco: Gael García Bernal, Vicky Krieps, Rufus Sewell, Ken Leung, Alex Wolff, Abbey Lee, Nikki Amuka-Bird, Eliza Scanlen, Kathleen Chalfant, Gustaf Hammarsten, Thomasin McKenzie, Embeth Davidtz
- Duração: 108 minutos
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A primeira cena de Tempo já coloca seu título (tanto o original, Old, quanto nossa versão em português) e sua ideia-base em voga. Uma família em férias conversa, na chegada a um paradisíaco resort à beira mar, sobre diversas variações – as idades das crianças, a forma como cada um gasta seu próprio tempo, em estado concreto ou abstrato, os conceitos de passado, presente e futuro são rapidamente introduzidos ao centro da narrativa, como uma introdução a seus próprios desdobramentos. A espinha dorsal do projeto é colocada à prova em uma abertura que representa uma espécie de apresentação, sem se tornar didático ou exagerado.
M. Night Shyamalan, um dos diretores mais polarizantes da atualidade, adquiriu um hábito cultivado através de sua filmografia como uma espécie de benção à própria narrativa: materializar-se em cena, como uma participação especial em seus longas. Na maior parte das vezes sua presença não passa de uma espécie de brincadeira no melhor esquema “onde está Wally?”, mas nessa sua nova produção, o indiano cria uma moldura em torno de sua presença, dando a ela um caráter que nunca teve antes e que poucos já o fizeram antes. Como uma espécie de cicerone gentil, Shyamalan conduz seu elenco até seu universo, literalmente, como se dissesse de maneira sutil “o espetáculo vai começar”.
Baseado em uma graphic novel, o roteiro de Shyamalan mais uma vez nos convida à suspensão da descrença para a fabulação; sua ética é para com a arte de contar histórias, a jornada empreendida pelo seu cinema é aquele oriundo dos seus antepassados na Índia, a arte de contar histórias de maneira oral. Mais uma vez esse recorte é colocado em cena, mas dessa vez o emocional é o elo que une essa sua verve. Como os personagens estão inseridos em contexto desconhecido para todos, a sua oralidade é para dissecar não os códigos do desconhecido, mas os seus próprios genomas.
Por mais que a abrangência do seu olhar sempre tenha ido no cume do humano independente da fábula, e debatido com resultados admiráveis a fé (Sinais), a confiança (A Vila), o senso de comunidade (A Dama na Água), em Tempo sua abordagem a respeito do fantástico parece se unir de maneira intrínseca ao que é seu interesse naturalista, as implicações do tempo de maneira macro e micro nas relações humanas sob diferentes aspectos. O que tangencia as discussões bancadas por Shyamalan, sua fantasia frontal, dessa vez soa como absoluto pano de fundo para um afunilamento em torno da família protagonista, diminuindo seu entorno gradativamente até restar apenas sua delicada tessitura desdobrada ao longo dos anos anteriores, e dos anos posteriores – encapsulados.
São dessas ternuras pontuais, que invadem o texto em meio ao caos que suas ações desencadeiam, que Tempo arregimenta sua grandeza de contorno, como quando os irmãos se questionam a respeito da necessidade que pulsa ainda neles de brincar, mesmo no olho do furacão. São dessas fissuras e tensões que surge o relevo filosófico sobre o qual o filme está estacionado, a respeito da forma como escrevemos e reescrevemos diariamente nossa relação com o outro, com o amálgama que criamos chamado família, e a forma como construímos e projetamos o tempo de maneira prática em nossos atos, mundanos ou grandiosos.
Por ter essa teia tão refinada de construção de filosofia, que inclusive se molda complexa a partir do momento em que se chocam o exíguo espaço-tempo em que o roteiro se desenvolve e a infinitude do que é representado em si, é que soam muito agudas as intervenções didáticas que o filme encampa, para que o espectador não se isole do entendimento – pra mim, superestimado em sua necessidade. Há uma veemência em suas conclusões que soam precipitadas para um grupo de pessoas que caiu em situação absurda e desconhecida em tão pouco tempo. Há também uma dispensável gordura final em sua necessidade de solucionar questões, ainda que o debate bancado seja pertinente; ainda que antiquada, sua “mensagem” é particularmente bem-vinda a partir dos eventos que cercam uma pandemia global.
A delicadeza com a qual seu texto é apresentado se junta à inspiração imagética de Shyamalan, em mise-en-scene impecável. A forma circular com o qual sua câmera se posiciona em mais de um momento se comunica com a ideia de temporalidade presa em uma ampulheta, assim como a forma como ele ressignifica as ideias de feminino e masculino em cena, ao desconstruir padrões de comportamento e posicioná-los em plano – Guy e Prisca refletindo-se nos bonecos que seus filmes manipulam, posicionando-os em contraponto. Sua parceria com Mike Gioulakis (o brilhante profissional por trás de Vidro, Nós, Corrente do Mal e O Mistério de Silver Lake) proporciona uma iluminação especial em polos muito específicos – a luminosidade insidiosa de um dia de sol em uma ilha deserta, e a escuridão avassaladora de uma noite rasgada por uma fogueira.
O diretor ainda entende o caráter marqueteiro do cinema hoje, então protege a todo tempo a imagem mesmo em cena. Os rostos e corpos de seus personagens não são abordados com leviandade – há cuidado no que mostrar, quando mostrar e como, em qual grau de relevação. E isso não se encerra a partir do momento que abre sua narrativa de maneira irreversível; Tempo explora suas imagens como se cada nova descoberta fosse inédita, e como tal merece suspense a cada novo foco. Apesar da humanidade empregada em cada abordagem, o autor não esquece sua ligação com o cinema de gênero, construindo cada plano e cada cena em progressivo ritmo de descoberta.
Shyamalan proporciona esse equilíbrio raro no hoje, de encontrar matéria-prima discursiva e ilusória em iguais qualidades, gerando também material de debate analítico de audiovisual, de qualidade insuspeita dentro do cinema hollywoodiano. Sua assinatura não só tem poucos pares, como exatamente em Tempo assume um caráter de humanidade própria dentro da própria obra. Que seu elenco entenda o teor de suas personas em cena, as curvas dramáticas propostas pelo entendimento desse lugar que não é unificado e serve a diferentes propósitos (Rufus Sewell e Gustaf Hammarsten em espaços mais alegóricos, enquanto Vicky Krieps e Thomasin Mackenzie em espaços naturalistas – todos em consonância impressionante) era o que faltava para que nossa compreensão do novo filme de M. Night Shyamalan corra por vias igualmente paralelas.
A alegoria de sua brincadeira de gênero não diminuiu ou desloca as questões aprofundadas do espelhamento temporal que seu quarteto protagonista empreende. Com a consciência do terreno escorregadio onde está inserido pode facilmente atravessar a concentração e a submersão em sua atmosfera, e Shyamalan redireciona o terror para sua faceta mais humana – por quanto tempo nós somos nós mesmos, estética e emocionalmente?
Um grande momento
“vamos montar um último castelo”