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The Watermelon Woman

Uma revolução esperada

(The Watermelon Woman, EUA, 1996)
Nota  
  • Gênero: Drama, Romance, LGBTQ+
  • Direção: Cheryl Dunye
  • Roteiro: Cheryl Dunye, Douglas McKeown
  • Elenco: Cheryl Dunye, Valerie Walker, Lisa Marie Bronson, Guinevere Turner
  • Duração: 85 minutos

Se não é tarefa fácil escrever sobre ‘The Watermelon Woman’ não tendo qualquer lugar de fala entre os tantos lugares que o filme reivindica, bem mais fácil e delicioso é assisti-lo, com todo o atraso possível para um dos mais interessantes e vibrantes filmes produzidos na década de 90. Com a certeza de estar empático com cada uma das questões que o filme apresenta, soa confortável ter tanto prazer em um filme que, na forma mais aparentemente descompromissada possível, apresenta suas armas. Infelizmente, o filme envelheceu NADA tematicamente, e as cobranças de 1996 estão ainda válidas, seguindo sua rota contínua de delicado mal estar em uma indústria que silencia tudo que representa curvatura – agora imaginem um filme que encampa tantas com tanta afirmação.

Divulgação

Cheryl Dunye, hoje ocupada em ‘dar tapas’ como diretora em hits do nível de ‘Bridgerton’ e ‘Lovecraft Country’, não apenas estreou no longa-metragem aqui, mas escreveu uma pequena página da História entre os capítulos não-escritos, não-dedicados e não-verbalizados no cinema. Negra e lésbica, Dunye não se via representada – e provavelmente, ainda não se vê. Os exemplos que vêm à cabeça em um lado ou outro da máquina são insuficientes para marcar território consistente em um espaço ainda extremamente racista e machista. Não é apenas em seu corpo que a diretora joga na tela por uma hora e meia, mas sua vivência, seu nome, sua trajetória de bravura resistente em um campo de dominação oposta à sua voz e à potência do seu discurso. O filme, sem a apresentação de credenciais pré, explode com sua vibração pouco creditada em volume. 

Trinta e seis anos depois do seu lançamento, ‘The Watermelon Woman’ ainda acende debates em relação ao que está em sua base: a procura de uma estrela negra dos anos de ouro, que desapareceu mesmo sem ter sido creditada. Como sempre que possível com toda mulher, Fae Richards foi apagada da História do Cinema e continua sendo sobre isso. Junto com a história do cinema negro de resistência, o que Dunye denuncia é o apagamento sistemático de uma mulher que é um acúmulo de minorias em um período histórico onde as minorias não tinham espaço, que dirá três em uma. Através de uma trama que tenta dizer umas boas verdades sem nunca cair na escolha mais óbvia – a da agressão pura e simples – o filme não envelhece porque não nascem Dee Rees, Ava Duvernay, Kasi Lemmons, Nia DaCosta, todos os dias. 

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Misturando a ficção que acompanhamos de fora da “história real” com a trama criada especialmente para a produção, o que temos é um híbrido de situações fictícias que desembocam na mesma narrativa, representando forças aliadas. Temos uma divertida comédia romântica acompanhando as vidas amorosas das amigas Cheryl e Tamara, duas jovens lésbicas em busca do amor, e temos uma representação a respeito da cena ‘black’ do cinema americano da era de ouro, quase toda narrada em fotos do período e “filmes da época”. Ambas se amalgamam muito bem, sendo ambas muito bem servidas de uma visão bem humorada para as relações, mas que nunca deixa de expor a denúncia implícita em cada cena, por mais leve que ela aparente ser. 

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Muitos exemplos levados às últimas consequências floreiam ‘The Watermelon Woman’ e seguem dando à obra uma significação muito particular. Um deles é a descoberta de um livro sobre o movimento lésbico escrito por um homem, devidamente debochado pela protagonista; outro é uma entrevista sensacional de Camille Paglia, a maravilhosa pensadora crítica, que entra na brincadeira e dispara uma saraivada de impropérios racistas em sequência, em ritmo de auto chacota. Essa sequência em especial é tão bem desenvolvida que demoramos a perceber os reais valores por trás do que a cena quer transmitir. De uma maturidade ímpar, esse tratamento dado ao seu humor e às alfinetadas que a produção tem prazer em dar, soam muito mais avançados do que a época permitia, o que talvez justifique o reconhecimento ao filme ser tão posterior ao seu lançamento. 

Desde o princípio, a reflexão em ‘The Watermelon Woman’ parece ressoar mais alto aos ouvidos – existe uma cartografia a respeito do que foi produzido acerca de povos ditos minoritários, de quem produziu as imagens que vemos e porquê. Dunye faz o que uma pioneira faria: toma para si o objeto fílmico e o constrói à sua própria maneira. No caso dela, era um quase inédito produto de reconhecimento da população negra, mas também uma forma de protesto contra o que sempre foi repetido e refeito.

Um grande momento
Saúde mental e coleira de cachorro

[11º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Cinema]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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