Crítica | Catálogo

Till: A Busca por Justiça

O horror, o horror

(Till, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Chinonye Chukwu
  • Roteiro: Chinonye Chukwu, Michael Reilly, Keith Beauchamp
  • Elenco: Danielle Deawyler, Jalyn Hall, Frankie Faison, Whoopi Goldberg, Sean Patrick Thomas, John Douglas Thompson, Haley Bennett, Sean Michael Weber, Eric Whitten
  • Duração: 125 minutos

Nada em Till é necessariamente desenhado a forma que normalmente veríamos. A essa altura, já temos a moldura exata como uma biografia “isca de Oscar” chegará até nós, e poucas vezes erramos na previsão. Os filmes são produzidos dentro de uma fôrma de bolo, para a indústria consumir sem muitas sofisticações visuais ou elaborações narrativas; em resumo, o tal “filme quadrado” costuma sair dessa seara histórica bibliográfica. O cinema sempre esteve nesse lugar da casca relevante que mal consegue esconder um burocrático, afinal o destino desses filmes é produzir uma indicação/vitória de seus intérpretes em premiações, no geral. De vez em quando surge algo como esse filme, que minimamente pensado, já salta aos olhos enquanto realização. 

Essa marca está assinalada desde a primeira cena, onde mãe e filho cantam no carro. O contra plongée sob a qual observamos Mamie Till, que se desfaz gradativamente, para que percebamos o trilho da personagem, que sai de uma vala ordinária da existência para alcançar o valor da lente, sem ultrapassá-lo, o que só acontece enfim na cena final. É uma forma de mostrar o nascimento político do valor dessa mulher, que enfrenta a dor de perder seu filho da forma mais bárbara possível para encontrar uma voz que ela nem se importava em ter. Parece bobo, até bastante clichê conceber esse raciocínio para uma realização que já deveria explorar isso. Mas para quem se educou à base de Ray, Clube de Compras Dallas e O Jogo da Imitação, sabe que essas escolhas são requintadas para a máquina industrial hollywoodiana.

Till - A Busca por Justiça
Cortesia Festival do Rio

Não temos outra culpada a apresentar pelo caso que não Chinonye Chukwu, a diretora que não quer entregar apenas um veículo. Ou melhor, porque entregar um veículo capenga, cheio de problemas de carburador, válvulas e até mesmo no motor, quando você pode vender um carro ao menos com uma aparência conservada? Till se engrandece graças a perseverança dessa diretora, que fez de Clemência, há dois anos atrás, uma sensação em Sundance e um postulante sério na temporada de prêmios, onde infelizmente não vingou. Dessa vez, com uma MGM por trás, a conversa parece estar mudando de figura. Mas a história aqui não é sobre Oscar (somente), mas sobre como realizar um produto até sim pretendente a prêmios, mas sem parecer porco, apressado, relaxado ou simplesmente feio.

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Em tese, filmes devem ser avaliados pelo que oferecem, que são suas tentativas de alcançar o que se pretende – e se a pretensão é ganhar trofeuzinhos tendo um vácuo no lugar do que deveria ser cinema, a gente brinca desse jogo. Mas Till verdadeiramente não quer somente isso, e sim buscar a justiça do título em português e a autonomia dessas questões taxativas e cafonas sobre meritocracia na arte. A lente com a qual Chukwu observa os acontecimentos não é apenas descritiva, mas principalmente participativa e comunicativa. É um filme que nos leva para dentro de suas nuances estéticas, proporcionando um cuidado particular para a imagem, e a partir daí sim, conceber uma discussão em caráter autoral que possa ser tratada de maneira adulta, e não de forma didática, apenas. 

Além disso, Till é uma experiência que persegue o horror, em sua estrutura. E isso vem dos eventos reais, da forma como Mamie tratou a tragédia em sua vida, e como ele se portou diante do resultado da mesma. Questionada dentro da própria família, o que Mamie faz eleva o trabalho de Chukwu, que tem o caminho aberto para alcançar um objetivo enviesado – levar uma demonstração de cinema de gênero para dentro de uma narrativa verídica. De caráter psicológico, o filme adentra em um terreno apavorante especificamente quando sua protagonista decide ir à cidade que lhe tirou a vida do filho para testemunhar no julgamento dos acusados. Todo o tratamento que vemos, então, é nunca menos que odioso, do encontro com uma criança já racista e sádica à postura dos adultos, que pontuam suas ações com os piores sentimentos possíveis. A “cereja do bolo” é o depoimento da mulher-chave do caso, vivida por Haley Bennett; só tenho a dizer que demorará algum tempo para deixar de sentir raiva da atriz. 

Till - A Busca por Justiça
Cortesia Festival do Rio

Mas se Till é essencialmente um veículo, ainda que costurado em luxo, como avaliar o trabalho de sua estrela, Danielle Deadwyler? Vinda de uma participação arrepiante em Vingança & Castigo, podemos dizer que a atriz consegue um feito e tanto, realçando a humanidade de uma mulher destruída. Particularmente, essa interpretação muito horizontal em um mesmo tom, agudo do início ao fim, sem uma quebra de moldura, não me é muito chamativa. A Mamie do filme é uma personagem muito preocupada, tensa e fincada na dor mesmo antes dos acontecimentos. Deadwyler entrega momentos destroçantes, cada grito seu parece rasgar o espectador em dois, mas de maneira subjetiva, gostaria de ver a personagem com mais de dois registros, ao menos. 

Isso não é um problema ao filme em si, muito mais parece uma ideia que se dá para a atriz. Mas consigo enxergar uma adoração em volta dessa atuação, me parece fazer todo sentido. Till é mesmo uma oportunidade gigantesca para qualquer profissional, e Deadwyler o abraçou com unhas e dentes. Combina com as curvas vistas no próprio filme, que ainda conta com a efusividade de Jalyn Hall, uma revelação absoluta que se conecta com a atriz da maneira necessária. Juntos, ambos constroem a verdadeira conexão que esse tipo de filme pretende, que é o laço empático com qualquer espectador. Que Chukwu tenha feito seu trabalho de casa e entregue um filme que vai além disso, é um outro acerto que precisa ser assinalado. 

Um grande momento
A chegada ao tribunal

[Festival do Rio 2022]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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