- Gênero: Documentário
- Direção: Eryk Rocha, Gabriela Carneiro da Cunha
- Roteiro: Eryk Rocha, Gabriela Carneiro da Cunha
- Duração: 108 minutos
-
Veja online:
A noção de que o céu pode ruir passou a ser uma ameaça concreta. Em A Queda do Céu, inspirado no livro homônimo de Davi Kopenawa, a queda é ancestral e urgente, atravessando um presente que se divide entre rituais e as pressões da modernidade predatória. No centro está o xamã, líder e voz de um povo que aprendeu a sustentar o céu sobre a floresta. Ele e a comunidade Watorikɨ se reúnem para o reahu, o ritual funerário que não se limita a homenagear os mortos, mas atua para impedir que o céu desabe. É o cosmos que está em risco, não apenas a terra que pisamos.
Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha constroem um filme que se aproxima sem invadir, permitindo que o espectador seja conduzido pelo tempo do povo Yanomami. Esse tempo é marcado pelo movimento circular das danças, pela força das canções, pela preparação dos corpos, pela comunhão de quem carrega nas costas uma história que o capitalismo insiste em interromper. Aqui, o inimigo não se apresenta como figura única, mas como lógica global. Vem com a mineração que devasta, com as epidemias que matam silenciosamente, com o desejo incessante pelo lucro que destrói.
A câmera observa, acompanha e, ao mesmo tempo, participa. Ela está ali para ser testemunha, não para traduzir. Isso dá potência à experiência. A Queda do Céu não busca uma narrativa explicativa, mas sim uma imersão sensorial e espiritual. Mais do que cenário, a floresta é uma personagem que respira, pulsa e chama. O som dos insetos, o eco das vozes, o toque nos instrumentos, tudo se funde em uma presença viva que reafirma que o território não é um espaço vazio a ser explorado, mas um organismo do qual todos fazem parte.
Kopenawa é a linha que conduz o filme. Sua fala alterna entre o política e o espiritual, denunciando a destruição e afirmando a cosmologia Yanomami como conhecimento primordial. Ele fala dos xapiri, espíritos da floresta que sustentam o céu, como parte de um equilíbrio ameaçado pelo garimpo, pela ganância e pela ignorância. Sua presença é calma e firme, e carrega a consciência de quem sabe que a luta pela sobrevivência do seu povo é também a luta pela sobrevivência do planeta.
Mesmo quando a narrativa se detém no ritual, há uma tensão constante. O reahu é celebração e resistência, é a reafirmação de um modo de vida que recusa desaparecer. A câmera captura rostos que choram, pintam-se, dançam, e cada gesto parece reafirmar que o céu não vai cair enquanto houver quem o sustente. É no entrelaçamento de festa e urgência, sem separar o sagrado do político e o espiritual do concreto, que o filme encontra sua maior força.
Mas há uma contradição que não passa despercebida. Ao tentar traduzir para a tela a complexidade e a densidade da obra que o inspira, o filme se perde algumas vezes. Certas camadas do pensamento de Kopenawa e da cosmologia Yanomami se diluem, e nem sempre a narrativa consegue dar conta de toda a profundidade que carrega. É nesse hiato entre intenção e realização que reside uma tensão adicional, que não diminui a importância do registro, mas deixa evidente a dificuldade de alcançar, compreender e traduzir este universo distante e complexo para quem não o vivencia realmente.
Ainda assim, quando A Queda do Céu se encerra, deixa asensação de que o ritual continua para além da tela, de que a ameaça persiste, mas também persiste a resistência. Cada presença na tela ecoa como ponte entre mundos, lembrando que o céu que paira sobre a floresta é o mesmo que paira sobre todos os seres humanos. O filme reafirma que, no limite entre memória e catástrofe, ainda é possível sonhar com alianças capazes de impedir a queda. E, até lá, cabe a todos decidir por ajudar a sustentar o céu ou empurrá-lo para baixo.
Um grande momento
A alegria no ritual


