(Carlota Joaquina, Princesa do Brazil, BRA, 1995)
- Gênero: Comédia
- Direção: Carla Camurati
- Roteiro: Carla Camurati, Melanie Dimantas, Angus Mitchell
- Elenco: Marieta Severo, Marco Nanini, Antonio Abujamra, Thales Pan Chacon, Ludmila Dayer, Eliana Fonseca, Beth Goulart, Vera Holtz, Ney Latorraca, Norton Nascimento, Marcos Palmeira
- Duração: 100 minutos
Quando Carlota Joaquina, Princesa do Brazil estreou em 1995, o cinema brasileiro atravessava uma de suas fases mais frágeis. O início da década havia sido marcado pelo fim da Embrafilme e pela interrupção de políticas públicas que mantinham a produção. Era o período conhecido como “década perdida”, em que a produção de longas praticamente cessou, restando apenas curtas-metragens e projetos isolados. Nesse cenário de paralisia, parecia improvável que um filme nacional alcançasse o grande público. O sucesso inesperado do longa foi, portanto, mais do que uma surpresa, foi um marco, símbolo da chamada retomada do cinema brasileiro.
Esse marco tem ainda mais força por vir de uma mulher. Carla Camurati era conhecida do público como atriz. Em 1987, ela já havia se arriscado na direção com o curta A Mulher Fatal Encontra o Homem Ideal que, inspirado na tradição do noir, parodiava arquétipos de gênero e já revelava uma ironia que se tornaria uma de suas marcas. Ao lançar Carlota Joaquina, Camurati não só estreava no longa, mas colocava uma diretora mulher no centro do renascimento da produção nacional.
O filme parte de um recorte na história do país, com o casamento de Carlota Joaquina, princesa espanhola, com Dom João VI, rei de Portugal, e a transferência da corte para o Brasil no início do século XIX. Mas não se interessa por uma reconstrução fiel. O olhar de Camurati é satírico, debochado, usando a caricatura como forma de repensar o passado. Carlota surge como figura grotesca, símbolo de uma elite que trouxe o atraso e a exploração para o Brasil, além da incapacidade de compreender o lugar para onde fugia. A História é reencenada como farsa, com um humor corrosivo que expõe a origem de uma estrutura de poder baseada no privilégio.
Marieta Severo e Marco Nanini estão no centro de tudo. Ambos colocam em cena uma energia cômica que combina ironia e exagero. Marieta constrói uma Carlota que transita entre a farsa e a repulsa, arrancando risos sem nunca – ou talvez justamente por nunca – deixar de expor o ridículo. Nanini, por sua vez, dá a Dom João VI uma presença patética e vacilante, revelando a bizarrice de um rei deslocado em terras tropicais. Essa dupla sustenta o tom satírico imposto pela diretora.
Megaprodução
A produção de Carlota Joaquina impressiona pela grandiosidade, sobretudo quando se considera o contexto de um cinema fragilizado. A direção de arte aposta no excesso, com cores fortes, móveis imponentes e objetos de cena que funcionam mais como elementos teatrais do que históricos. A própria viagem da corte portuguesa para o Brasil impressiona na reconstrução, reforçando a ideia do deslocamento absurdo de uma corte perdida. O passado é tratado como palco, e cada detalhe parece contribuir para o deboche com que Camurati aborda a História oficial.
O figurino, volumoso e vibrante, completamente inadequado ao calor tropical, acentua essa sensação de deslocamento. Já a maquiagem aposta no excesso, carregando expressões para além do natural. Figurino e maquiagem, juntos, reforçam a dimensão caricatural dos personagens, tornando cada rosto e cada corpo uma extensão da farsa encenada.
Há ainda escolhas de câmera que sublinham esse exagero, especialmente os pseudo-planos-sequência que marcam momentos centrais. É o caso do do baile, quando a câmera desliza entre os convidados, perdida em dança, encontros, comidas e trejeitos. São ridículos pequenos gestos que transformam a corte em espetáculo. A combinação de arte e forma não busca a fidelidade da reconstituição, mas a criação de um teatro farsesco que sustenta a ironia do filme.
Seguindo a farsa
Caricatura e sátira se tornam recursos de leitura. Os trejeitos de Carlota, o descompasso da corte, a opulência deslocada em terras tropicais são encenados como farsa grotesca. A História colonial, assim, é devolvida ao espectador não como lição, mas como peça audiovisual que revela sua absurda lógica de dominação.
A escolha teve impacto imediato. Enquanto muitos esperavam que a retomada fosse marcada por filmes sérios, solenes, que “recolocassem o Brasil no mapa”, Camurati abriu o ciclo com uma comédia. Essa decisão foi ousada, mas também política. Ao rir do poder, o longa reafirmava a possibilidade de um cinema popular, comunicativo, capaz de dialogar com a plateia sem abrir mão da crítica. Foi justamente essa mistura de ironia e leveza que atraiu quase um milhão de espectadores, um feito inédito naquele período.
Há quem veja nesse excesso uma limitação. O humor, por vezes, pode parecer fácil, aproximando o filme de uma linguagem que lembra a produção seriada televisiva. E a caricatura corre o risco de simplificar personagens complexos em tipos unidimensionais. Essa crítica, no entanto, não diminui a força do gesto, Carlota Joaquina trouxe público de volta ao cinema brasileiro, reabriu espaço para novas produções e deu visibilidade a uma diretora mulher num momento em que a presença feminina no cinema era ainda mais restrita do que hoje.
No Brasil de 1995
O contexto da época é fundamental para compreender o impacto do filme. O governo de Itamar Franco havia iniciado a reestruturação de políticas culturais, e logo depois, já no governo Fernando Henrique Cardoso, foi criada a Lei do Audiovisual, que permitiu novos financiamentos. Carlota Joaquina surge justamente entre esses dois pontos, tornando-se símbolo de uma retomada que conta com outros títulos fortes, mas que tem no longa de Camurati seu marco inaugural.
É importante lembrar que, além de público, o longa animou parte da crítica. Por outro lado, encontrou resistência em parte dela, que destacava imprecisões históricas e via no excesso de caricatura um risco de banalizar a História. Ao mesmo tempo, a ousadia de Camurati era reconhecida, abrir o ciclo com humor, com uma farsa que cutucava feridas coloniais, foi uma escolha que deslocou expectativas e trouxe ecletismo à retomada.
Fato é que o tempo ajuda a compreender o peso da obra. Hoje, Carlota Joaquina pode parecer datado em certas soluções formais, mas permanece como documento essencial. Não só pela narrativa, mas pelo que representou em termos de reabertura de mercado, de reencontro com o público e de afirmação de uma voz feminina em um espaço historicamente masculino. Nesse sentido, ele não é apenas filme, é marco político e cultural.
O resultado é uma obra que pode ser irregular, mas que guarda uma imensa força simbólica. Carlota Joaquina, Princesa do Brazil abriu o caminho para a retomada do cinema brasileiro, provou que era possível trazer espectadores de volta e mostrou que a crítica pode nascer também do riso. Não foi apenas a retomada de uma produção, mas a retomada da confiança. O cinema nacional estava de volta, incomodando e divertindo.
Um grande momento
O baile