Crítica | Festival

Túnica Turquesa

Todos os toques

(Le Bleu du Caftan, MAR, FRA, BEL, DIN, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Maryam Touzani
  • Roteiro: Maryam Touzani
  • Elenco: Lubna Azabal, Saleh Bakri, Ayoub Missioui
  • Duração: 120 minutos

Um dos três protagonistas de Túnica Turquesa é um alfaiate. Logo, um homem que precisa trabalhar com a precisão das mãos o tempo todo. É nesse contexto que as imagens do filme se tornam tão poderosas, como um convite a adentrar àquela delicadeza. As mãos de Halim estão em ação a todo tempo, cortando tecidos, costurando fios bordados às túnicas, e aos poucos essa lógica vai percorrendo os outros dois personagens, e o que temos é uma produção dedicada à suavidade do toque. Halim, sua esposa Mina e seu ajudante Youssef se deixam levar pelo que é traduzível pelos seus gestos, pelo que suas mãos alcançam e realizam. Em busca da compreensão de um gesto simples como o de dois mindinhos se tocando, esses personagens tentam se comunicar sem palavras, apenas pela forma como tocam uns aos outros. 

Exibido na Un Certain Regard do Festival de Cannes, essa produção marroquina não se apresenta. Temos a positiva impressão de que entramos no meio de uma situação já formada entre esses três personagens, que têm uma vida comum na loja do casal onde trabalha o jovem aprendiz, e essa relação parece estar em constante sobressalto. Os olhares que Mina lança já dizem que ela não está de boba ali, sabe que um sentimento está nascendo e é mútuo; o que ela não sabe é que Halim não tem vida dupla de hoje. Apesar de, no papel, a trama de Túnica Turquesa parecer a de uma fofoca de bairro, o que a direção propõe aqui é um olhar que humanize os três personagens e torne aquela situação cada vez menos aceitável emocionalmente para os envolvidos. 

Túnica Turquesa
Cortesia Festival do Rio

A diretora Maryam Touzani está no segundo longa da carreira, e aqui demonstra uma confiança na imagem como tradutora de narrativa. Quase por toda a duração, Túnica Turquesa trabalha no registro muito mais da conexão pelo plano, do que pelo diálogo. Apenas Mina parece interessada em falar e ouvir, até compreender que também ela consegue relacionar-se através do gesto. Um mundo onde esse homem vive recluso constantemente em relação ao que sente e em qual seu grande desejo é um mundo silencioso mesmo. Do ponto de vista da construção da ideia, essa é uma decisão de coragem por parte da produção, que acerta ao preferir que a sutileza empregada seja transmitida através de toques, deliberados ou escondidos. 

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Também a comunicação entre os personagens parece ser feita através do tato. Principalmente o que é vivido entre Halim e Youssef é uma constatação que acontece por conta de sua colocação profissional. O alfaiate é herdeiro da função do pai, sua loja foi fundada pelo mesmo, e talvez por isso a relutância em conspurcar aquele território quase ancestralizado. A realização de Halim se dá longe daquele ambiente, onde pode exprimir seu desejo igualmente escondido; é o esconderijo do esconderijo, o que torna o tipo cada vez mais complexo. Toda sua construção é envolta no mistério que ele guarda inclusive de si mesmo em relação a sua orientação sexual. A cena de sexo entre Mina e Halim, também essa cena refém da mão indócil da esposa, é das mais especiais de Túnica Turquesa.

Túnica Turquesa
Cortesia Festival do Rio

Uma única questão é levantada pela produção e ameaça colocar o roteiro em risco. Mina é uma mulher que já estava adoentada previamente às ações da produção, mas piora com os eventos aqui narrados. Mesmo escrito e dirigido por uma mulher, fica a questão a respeito da necessidade de uma felicidade alicerçada sobre a depreciação do corpo feminino. Ainda que Halim de alguma forma respeite essa mulher, e vá com muita insegurança até o que quer justamente pelo respeito à sua companheira, Túnica Turquesa não deixa de montar o seu drama com essa base. A necessidade dessa argumentação era válida? Fica no ar a sensação de castigo para todos os envolvidos, o que não deixa de ser uma mensagem de culpabilização pelo que se é.

Touzani não faz alarde sobre sua narrativa, e a desenvolve com um ritmo muito próprio, extendido, que permite às cenas um respiro para conceber certas emoções. A impressão que fica é a de que Túnica Turquesa compreende o tempo real das descobertas, que não é o tempo cinematográfico. Aqui, ficamos a par de emoções que não estão sendo ofertadas gratuitamente, por isso o tempo delas é tão particular. Esses toques mútuos, as mãos que procuram uns pelos outros de cada um dos três, é construído para uma lógica interna que conduz o conceito da produção. Fica a beleza do cuidado que une essas três pessoas, que passam por estágios cada vez mais surpreendentes da aceitação de seus sentimentos, e da lógica que falta muitas vezes em amar alguém.

Um grande momento
“pegue o fio do chão, por favor”

[30º Festival MixBrasil de Cultura da Diversidade]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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