Crítica | Festival

BR Trans

Parem de nos matar

(BR Trans, BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Raphael Alvarez, Tatiana Issa
  • Roteiro: Raphael Alvarez, Tatiana Issa
  • Duração: 80 minutos

Adaptado do enorme sucesso de… não, vou começar diferente. Pq BR Trans, na verdade, não é adaptado do sucesso que catapultou Silvero Pereira para onde o conhecemos hoje. Muitos anos antes do Lunga de Bacurau, houve Gisele, a protagonista teatral que mostrou ao mundo o ator que hoje é enorme, de projeção. Nesse palco, quem viu já comprovou o tamanho do talento. O que a montagem de ‘BR Trans’, na verdade, faz aqui, é apresentar a um público ainda maior esse trampolim de Pereira para também gerar algo novo, que não é uma versão cinematográfica daquela montagem. Está em cena a sagacidade narrativa de Raphael Alvarez e Tatiana Issa, que pegaram aquela base no qual se sustentou enquanto projeto cênico, e deram voz a todas as Giseles do mundo.

Alvarez e Issa já tinham dirigido há 10 anos o excelente Dzi Croquettes, um documentário dos mais interessantes produzidos na última década no Brasil. Não apenas por recordar aquele grupo de artistas, mas por dar humanidade e proximidade a pessoas que, a despeito de sua fama internacional, vieram ao mundo em um país que discrimina até hoje tudo que eles são. As personagens de BR Trans estão no mesmo lugar de descoberta emocional, e da necessidade de dar visibilidade a pessoas cuja trajetória não deveria ser ainda mais atacada do que a vida já o faz. Aos poucos, as histórias que Pereira encena no palco vão encontrando eco nos relatos reais, e o sistema vai sendo colocado em paralelo; são todas vítimas sociais que pagam por serem quem são. 

Se no palco, o ator dá voz a mulheres trans que sofreram, precisaram conhecer a prostituição para sobreviver e não têm medo de expor suas feridas, nos bastidores Pereira consegue se identificar ainda mais com o que está encenando. Não é à toa a opção do filme em caracterizá-lo como uma garota de programa tentando conseguir clientes na Lapa carioca. Além da peça, o ator já interpretou outras personagens em contato com esse universo, como a Elis Miranda da novela A Força do Querer. Reconfigurar a imagem desse ator e utilizar sua persona para jogar luz sobre a invisibilidade de uma classe inteira é um dos pontos que BR Trans marcou em sua transposição, com a sensibilidade de nunca tentar roubar o lugar de fala das personagens, e sim apresentando a sua visão sobre o que vemos. 

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Sem perder força narrativa, o que BR Trans não consegue impedir é a impressão de que as histórias das mais de 20 entrevistadas infelizmente se parecem, aqui e ali. A culpa não é delas, mas sim das opções estéticas que os diretores encontraram para dar voz a suas heroínas. Como o cenário é o mesmo (uma janela aberta), o filme nem sempre consegue dar pluralidade a seu discurso, por ter enfileirado esses depoimentos de maneira formal. Por maior que seja o interesse do espectador, e é muito difícil perder o interesse por tais mulheres, o filme não as unifica o suficiente para que suas potências sejam reverberadas com maior alcance. Alguma outra costura deveria ter sido feita, para além dos depoimentos e imagens das personagens em suas funções, para que o filme evoluísse. 

Mas nada é menor quando cada uma das suas personagens começa a discorrer sobre suas trajetórias, as dores que começaram em casa, viraram expulsão muitas vezes e se arrastam pelos encontros e pelo sexo pago. São mulheres à mercê da violência urbana, da mutilação em suas personalidades, ao apagamento de seus sonhos, por uma tentativa de permanecerem vivas. BR Trans é um projeto que nem sempre nos deixa confortável, mas esse é o exato interesse de Alvarez e Issa, passar por cima de uma caretice antiquada para dizer nas únicas pessoas que saem assassinadas de uma relação entre uma mulher trans e um homem cis. Doloroso, o filme deixa à mostra suas marcas emocionais, que tocam e revelam o tanto desse Brasil assassino que precisa parar para observar essas mulheres como indivíduos com direito de viver como todos nós. 

Um grande momento
Várias recusas, até a aceitação

[30º Festival MixBrasil de Cultura da Diversidade]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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