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Uma Garota de Muita Sorte

Culpada por ser mulher

(Luckiest Girl Alive, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Suspense
  • Direção: Mike Barker
  • Roteiro: Jessica Knoll
  • Elenco: Mila Kunis, Chiara Aurelia, Finn Wittrock, Connie Britton, Scoot McNairy, Justine Lupe, Dalmar Abuzeid, Alex Barone, Jennifer Beals
  • Duração: 113 minutos

Histórias terríveis e sempre possíveis. Ao ver um filme como Uma Garota de Muita Sorte, a sensação que fica, pelo menos em mim, mulher que sou, é que nunca há absurdo quando se fala de violência contra a mulher. Não basta ter a certeza de que o acontecimento terrível que desencadeou tudo é corriqueiro, eu também sei que é o tipo de coisa que um homem, em qualquer situação que fosse, faria; e, vejo hoje, o “apoio” familiar de muitas seria o mesmo. Então, já fica o aviso, vai ser difícil para qualquer uma.

O longa, dirigido por Mike Barker – produtoras mulheres, são oito aqui, incluindo a protagonista Mila Kunis, fica o apelo pela importância de observar essas escolhas no futuro – trata de dois temas muito complexos: o massacre em escolas e o abuso sexual. No centro da trama está Ani Fanelli, antes TifAni, uma mulher quebrada que se moldou para apagar um passado que nunca deixou de existir, fez de tudo para criar uma persona que estivesse o mais próximo possível de seus agressores, físicos e psicológicos, e assim tivesse algum tipo de força para talvez seguir em frente.

Uma Garota de Muita Sorte
Sabrina Lantos/Netflix

Quando o passado ressurge na figura do agressor, agora mais vítima do que antes, ela entra no estado de confrontação e reavaliação de si mesma. Uma Garota de Muita Sorte vai se alternando entre presente e passado, com a vida perfeita de Ani ruindo enquanto as frestas deixam escapar aquilo que sua versão mais jovem, vivida por Chiara Aurelia, experienciou. A lógica narrativa, que funciona no roteiro de Jessica Knoll, também escritora do livro no qual o filme se baseia, perde com a obviedade da direção de Barker e seus muitos espelhos e reflexos, em disposições cênicas que reafirmam sentimentos e passagens descritivas demais.

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Há ainda, e essa é uma questão que ultrapassa a estética, elementos e personagens que sobram na trama, além de alguma falta de profundidade, como se fosse preciso elaborar coisa demais para um espaço que não comporta tanta informação. Como disse, são temáticas complexas, que merecem atenções específicas e nem sempre há sensibilidade para que ambas sejam tratadas como deveriam. Porém, enquanto obra, o suspense sustenta o todo em Uma Garota de Muita Sorte e faz com que o longa prossiga até o final. Segue mais esvaziado do que deveria, mas não deixa de causar algum impacto e levantar a discussão necessária, pelo menos parte dela.

Uma Garota de Muita Sorte
Sabrina Lantos/Netflix

E é a parte mais dolorida, pelo menos para nós. Ainda que reduzida a culpa do homem branco hétero cis que segue impune e acobertado de seus malefícios e é tratado com diferença, seja quando estupra ou mata dezenas, é devastador ver como é fácil culpabilizar a vítima mulher, como vivemos em um mundo onde não é possível falar, onde as pessoas já partem do pressuposto e que, por não sermos homens, somos imediatamente culpadas, ou merecedoras da dúvida. E por qualquer pessoa, inclusive outras mulheres, inclusive por nós mesmas.

Um grande momento
Testando facas

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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