Uma Noite em Miami…

Reapropriando espaços e falas

Quando Leonardo DiCaprio, há 21 anos atrás gritou da proa de um navio que era o “king of the world”, ele colocava para fora os pulmões de Jack Dawson, pobre, classe desimportante do maior transatlântico do mundo; na superfície, no entanto, o que víamos era a consagração de um jovem astro loiro de olhos azuis a um patamar de onde nunca mais saiu. 2021: Eli Goree, jovem ator canadense, também grita que é o rei do mundo ao fim do primeiro ato de Uma Noite em Miami…, mas tudo que se é representado ali é algumas muitas vezes mais expressivo – quantos jovens negros puderam gritar isso, na vida ou na arte, de construção tão forte cujo simbolismo ressignifique todo o olhar, para a obra e para a sociedade?

Regina King ganhou um Oscar há dois anos pelo filme Se a Rua Beale Falasse, e passou toda a década dirigindo episódios de séries de TV para chegar até aqui, em sua estreia como diretora de cinema de maneira ao mesmo tempo segura e arriscada, em óbvia contradição. A segurança advém de um produto já testado qualitativamente como a peça original de Kemp Powers ter gerado o filme em si, adaptado pelo autor; já o risco também se dá por esse motivo, tendo em vista as dificuldades de adaptar uma obra teatral para as telas sem parecer reverente ao texto, e necessitando soar livre das amarras que o palco produz.

Nesse sentido, o filme dá um passo adiante ao que A Voz Suprema do Blues fez esse ano, ao dinamizar os espaços cênicos e tentar ampliar o escopo do olhar para seus domínios narrativos, gingando pelo exíguo cenário que se impõe boa parte da duração e conseguir experimentar o exterior do mesmo com propriedade natural. Há um entrecho inicial que antecede à ação onde se concentra o ato cênico original, que não apenas apresenta seus personagens como também evolui a fictícia noite em que os mesmos se encontram para ecoar suas vozes, que é necessariamente inclusive o mote da obra, impulsionar a capacidade que heróis periféricos têm de serem ouvidos, amplificar seus alcances e celebrar suas existências.

Sem tomar partido de nenhum tipo, o filme abastece as personalidades de Malcolm X, Jim Brown, Sam Cooke e de Cassius Clay dos subsídios que os tornariam lendários, cada um em sua área e ostentando as cores de suas peles. Repletos de contrastes, o líder ativista, o campeão de futebol americano, o cantor de sucesso e um dos maiores pugilistas da História do boxe eram amigos de verdade, e Uma Noite em Miami… processa esse encontro que nunca aconteceu em momento crucial para suas trajetórias, às vésperas da mudança de nomenclatura de Clay para Muhammad Ali. O absurdamente espontâneo texto de Powers celebra as diferenças e os coloca em cheque às próprias convicções, obrigando cada um deles a expor sua verdade para confrontá-la no momento seguinte.

As decisões de Regina são acertadas a começar pela escolha da experiente Tami Reiker para fotografar o filme e conferir a ele uma mistura acertada de claustrofobia com um ilusão de liberdade intensa, ao ampliar os campos de visão dos personagens, dando a eles vastas possibilidades de movimentação e amplitude de raio de ação, mesmo que saibamos que esses espaços são limitados. Isso contribui inclusive com a temática de Uma Noite em Miami…, que versa sobre a tentativa desses homens em libertar-se de um papel social imposto a eles, enquanto periféricos alçados à idolatria branca – as imagens aparentam mais do que efetivamente representam, e Regina tira proveito dessa limitação.

Ao abrir seu filme em um ringue e montar essas sequências com o vigor que nos acostumamos a ver em produções do tipo, a diretora dá a Tariq Anwar (o veterano montador indicado ao Oscar por Beleza Americana) a oportunidade de dedicar inúmeras texturas de ritmo, determinadas por cada personagem ao longo de suas apresentações, e imprimindo a produção em si um arrojo técnico facilmente perceptível, que emoldura as emoções do espectador com essas gradações alteradas de maneira envolvente. Isso não confere somente cadência a Uma Noite em Miami… como um senso estético apurado que não costumamos ver com frequência em produçõcom essa origem.

O quarteto protagonista funciona à perfeição, cada um modulando intenções diferentes e interagindo com a naturalidade que o projeto exigia, sem deixar claro nunca um destaque óbvio. À medida que Kingsley Ben-Adir cresce, por exemplo, vemos Aldis Hodge nunca perder concentração da tessitura apaziguadora de seu personagem, ao passo que Leslie Odom Jr enfrenta o furacão ao seu redor com uma altivez impressionante e Eli Goree nunca deixa de explorar a pureza que reside em si. A cada quebra de seus personagens, todo o grupo reage de maneira orgânica e concentrada e todos contribuem para o projeto ter uma voz límpida a respeito de cada representação ali defendida, em pontos de vista delineados com delicadeza pelo roteiro.

Empregando em igual teor emoção e fibra, Uma Noite em Miami… faz parte de um grupo de produções que deram a essa temporada uma coesão impressionante no que diz respeito a representatividade étnica americana, e porque não dizer, social. Quando na linha do tempo, vemos Ma Rainey bradar pra ser a voz suprema de sua cor e 40 anos depois Sam Cooke ainda esteja subjugado, passando pela perseguição sofrida por Billie Holiday, o posterior necessário surgimento dos Panteras Negras e o envio de negros para as linhas de frente de batalha de todas as guerras, inclusive a do Vietnã, e percebemos como todos esses períodos serão revisitados nessa temporada (Estados Unidos vs Billie Holiday, Judas e o Messias Negro, Destacamento Blood), percebemos que todas essas vozes precisam ser ouvidas todas juntas, e formar um dos mais impressionantes momentos para a comunidade negra na História do Cinema Americano; Regina King realiza a sua parte desse todo com o brilho que sempre teve imprimiu como atriz.

Um grande momento
Bob Dylan

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