Crítica | Streaming e VoD

Bela e Rebelde

Na tela, um ser humano

(Sei nell'anima, ITA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Cinzia TH Torrini
  • Roteiro: Cinzia TH Torrini, Cosimo Calamini, Donatella Diamianti
  • Elenco: Letizia Toni, Selene Caramazza, Stefano Rossi Giordani, Maurizio Lombardi, Teresa Tanini, Florian Piersich, Christian Stamm
  • Duração: 107 minutos

Se uma biografia tradicional já não é a melhor tradução de obra cinematográfica possível, um material biográfico que tente incorrer em situações não-tradicionais porque essa seria a única forma de abordar uma pessoa ainda viva, deve ser uma concepção que se aproxime de um pesadelo. Bela e Rebelde acaba de estrear na Netflix com a responsabilidade de nos aproximar de uma estrela italiana com pouca influência internacional, de uma maneira em que sua obra faça sentido, sua vida tenha coerência temporal e o pano passado de sempre não seja tão perceptível. Com tantas chances de ser mal sucedido, é uma vitória particular o que acontece aqui, com dignidade e um mínimo de clareza, nada irá provocar escândalos  entre os envolvidos, ao mesmo tempo em que a obra se mostra verdadeira. 

Provavelmente ajuda o fato da cineasta Cinzia TH Torrini ser contemporânea à Gianna Nannini, uma das maiores estrelas do rock da História da música italiana. O filme é baseado em livro escrito pela própria artista, o que é mais fácil para adentrar sua trajetória. Dessa forma, podemos acreditar que tudo o que vemos é verdadeiramente apoiado por Gianna e seus familiares, que não são diminuídos de forma alguma por Bela e Rebelde. O filme é uma carta de amor mais do que a sua existência, mas acima de tudo a integridade dessa trajetória, que o filme abre sem pudores. Raro de se ver, o filme consegue capturar a essência da artista, de seus temores, de suas inclinações, sua personalidade, enfim, e é a isso que uma obra assim tem de ser fiel, muito mais do que a eventos e temporalidades. 

Quando um retrato tão verdadeiro é conseguido por um material que geralmente se prende ao que são os passos determinantes para uma jornada ser cinematográfica (ou o que se entende como tal), o que é cartesiano em uma história passa a ter valor reduzido. Afinal, o que importa na hora de olhar para alguém é conhecer a sua verdade, e não compreender em que data específica alguém fez o quê. Bela e Rebelde, se não é um molde perfeito para ser copiado no futuro, é porque essa biografada especificamente não permitiria reservas quanto ao seu interior, e a narrativa em questão pega para si a efervescência de sua aura marginal, ao correr ao largo do que a vida lhe oferecia. Gianna fez questão de fugir de todos os atalhos que o caminho lhe deu, e construiu um nome em cima de uma coleção de erros. 

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Estamos diante então exatamente dessa liberdade de olhar que geralmente é perseguido pela integridade artística, com poucos resquícios da padronagem habitual. O campo da montagem não comete nenhum desatino ao desalinhar uma linha evolutiva conhecida, porque a intenção aqui é rearranjar nossos conceitos de certeza. O que acabou de ser visto é retrato da visão de Torrini e seus co-roteiristas, ou exatamente da protagonista em suas muitas descidas a lugares inimagináveis para a tradição da burguesia da qual pertencia; na dúvida, aceite um misto das duas respostas. Bela e Rebelde está interessado em ser honesto, mas não somente à obra que está criando, mas principalmente à artista forte e transgressora que a biografada é. 

De forma alguma o que vemos seria fruto de uma produção chapa branca, interessada apenas nos pontos positivos da vida de uma artista, pelo contrário até. Existe um momento na narrativa de Gianna onde tudo parece definitivamente perdido – sua carreira, suas relações amorosas, a relação com sua família, sua sanidade, até mesmo sua vida. É a partir desse ponto, sem abordagem exploratória mundo cão, que Bela e Rebelde parece conseguir com que a humanidade de sua protagonista venha à tona, com um olhar terno e cheio de compreensão para o que esse caminho representa em matéria de alcance e de representatividade. É uma abordagem dura em relação a um mergulho sem amarras ao contexto das drogas e da perda do referencial psicológico, causado por anos de dependência emocional e perdas afetivas irreparáveis. 

Tem muito cuidado no que é apresentado aqui, com a delicada interpretação de Letizia Toni no papel principal alavancando o que vemos. Ainda que muitos detalhes acabem por escapar do resultado final, que mantém o espectador mais próximo de um lugar das elipses e das elucubrações particulares, Bela e Rebelde tem o cuidado que não se vê no material que é normalmente entregue por biografias ou pela Netflix. Quando pensamos em títulos vergonhosos como Bohemian Rhapsody ou O Jogo da Imitação, o filme ainda ganha muito mais em personalidade e relevância estética e narrativa. Não é todo dia que encaramos a descida ao inferno de alguém sem julgamentos, e com a motivação única de ser fiel a tudo em que se acredita. 

Um grande momento

A volta para casa, com Onze

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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