Crítica | Festival

Uma Segunda Vida

Além de si mesmo

(A Second Life, FRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Laurent Slama
  • Roteiro: Laurent Slama
  • Elenco: Agathe Rousselle, Alex Lawther, Jonas Bachan, Suzy Bemba, Jewerl Ross
  • Duração: 77 minutos

Elizabeth Vogler é uma jovem que nos apresenta, logo no início de Uma Segunda Vida, as características mais proeminentes de alguém que está fazendo um pedido de socorro. Nem ela tem consciência disso, nem daria o braço a torcer para essa questão, mas essa é a verdade transparente em cena. Logo na abertura, vemos uma porção alarmante de remédios sendo triturados, misturados em água, gerando um coquetel mortal. Ela olha para ele. Esse pedido não é feito somente ao espectador, mas ao seu redor, a cada novo contato; não que ela demonstre isso, o que existe é exatamente uma repulsa a qualquer forma de interação social. O único a decodificar essa situação é Elijah, um novo cliente, que se conecta a ela mesmo com todas as investidas negativas dela. O que nasce dessa simplicidade toda é um dos filmes mais tocantes da Mostra SP 2025. 

O filme é dirigido pelo quase novato Laurent Slama, e o quase fica por conta de que seus dois filmes anteriores eram assinados por um pseudônimo: Elizabeth Vogler. Dessa forma, é fácil perceber o quanto de autobiográfico reside em Uma Segunda Vida, uma produção de identificação imediata, seja por aproximação ou negação. O que está na tela é ao mesmo tempo bastante reconhecível, e também temerário; quantos de nós estão em situação parecida com a de um dos dois protagonistas, e se nega a perceber? De carisma inegável, o filme é uma espécie de reedição do Simplesmente Feliz, um dos grandes filmes de Mike Leigh, com a ótica oposta de lá. Essa afirmação afastará parte do público, infelizmente, porque poucos hoje querem olhar para o espelho ao assistir uma obra. 

Elizabeth não é uma vítima da sociedade, e essa é uma das conversas que Slama tem com quem assiste sua obra. Ela é um ser humano falho, cheio de contradições e erros frequentes ao longo da projeção, que está em um momento desesperador. Talvez ela mesma não se dê conta do quão no limite está, mas essa é uma das muitas características que não apenas a colocam nesse lugar, como fazem dela um ser fascinante, a ponto de atrair uma espécie de nêmesis. Se todo o giro em torno de Uma Segunda Vida parecia inexplicável sem a necessidade desse novo tipo, a chegada de Elijah vai além de fazer o roteiro apresentar sentido. Ele monta uma nova rede de observação para sua protagonista, permitindo ao espectador “irritado com a irritação alheia” procurar nela seus pontos sensíveis. 

Isso é feito chamando atenção para uma leveza que é um molde para Elijah, mas sem agregar ao personagem grandes doses de igual complexidade. A positividade extrema, aqui, vai além de aproximar nossos opostos, mas revelar que ainda assim esses dois seres humanos se parecem muito. A cena do metrô, onde vemos o ying/yang perfeito do personagem ruir enfim, é seriíssima e um alerta para quem está vivendo isso fora das telas e possivelmente encontrar mais um ponto de conexão com Uma Segunda Vida. Então, a aparência de equilíbrio do personagem precisa também de dedicação e manutenção diária, porque todo o estresse e tensão posta em suas costas resulta nesta cena onde finalmente Elizabeth precisa ceder, para perceber que faz parte do universo, mas não é dona dele. 

Elizabeth e Elijah são vividos por Agathe Rousselle (de Titane) e Alex Lawther (de O Último Duelo) com tamanha entrega e dedicação, que a química entre eles, tão negada pela primeira, está evidente desde o primeiro encontro faiscante entre os dois. Uma das inteligências de um grande roteiro é mostrar que um homem e uma mulher não precisam estabelecer laços românticos em uma obra para que o afeto naturalíssimo se desenvolva. Uma Segunda Vida move seus próprios peões no tabuleiro ao recusar a expectativa da narrativa estadunidense, e entrega, através de duas interpretações ricas nuance e sinergia, um produto bem mais elevado do que costuma apregoar as produções hollywoodianas – e talvez por isso suas curvas sejam tão particulares, e seus temas não sejam reproduzidos por lá. 

Daquelas ideias extremamente simples, mas que conversam em excesso com o mundo de hoje, talvez um certo olhar auto ajuda transpareça na obra, mas tenho certeza que não era essa a intenção. Uma Segunda Vida tenta parar seu ritmo frenético auto imposto por um olhar cheio de compaixão para seres que sofrem ao mesmo tempo, na mesma hora, na mesma cidade, sem perceber os elos que os unem, ainda que tão próximos. 

Um grande momento
A queda de Elijah, para a mudança de chave de Elizabeth

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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