Crítica | Festival

Unclenching The Fists

Amor de rejeição

(Unclenching The Fists, RUS, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Kira Kovalenko
  • Roteiro: Kira Kovalenko, Lyubov Mulmenko, Anton Yarush
  • Elenco: Milana Aguzarova, Alik Karaev, Soslan Khugaev, Khetag Bibilov, Arsen Khetagurov, Milana Pagieva
  • Duração: 97 minutos

Ganhador do prêmio principal do Un Certain Regard em Cannes, com um júri capitaneado por Andrea Arnold, o filme de Kira Kovalenko estreou na Mostra de SP e dividiu bem o público. Unclenching the Fists é todo desconforto e mergulho na fragmentação emocional que imbrica a jovem mulher e filha do meio, Adadza (Milana Aguzarova) num desespero tátil, sendo ela o coração e mola propulsora de um filme visceral, doído de assistir. Cada ação, gesto e palavra dela, firmemente acompanhadas pela câmera, podem ser aquilo que irá acionar a bomba e mandar tudo pelos ares.

Após colaborar com Kantemir Balagov (diretor de Uma Mulher Alta) em seu primeiro longa, Sofichka , Kira adentra simbólica e visceralmente na tragédia de uma jovem mulher tendo como corroteirista a também atriz Lyubov Mulmenko. Captando muito bem as angústias e também pequenas alegrias possíveis na vida de Ada, Milana Aguzarova é um baita acerto de casting como a protagonista. Dos aspectos técnicos, importante mencionar também a cinematografia, a cargo de Pavel Fomintsev, que intensifica o drama familiar com os jogos entre luzes, sombras, a câmera claustrofóbica, a desolação nas cenas diurnas e algum vislumbre de liberdade em sequências como a da piscina com suas ondulações esverdeadas.

Unclenching the Fists
Cortesia Mostra SP

Chave e cadeado

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Adadza, chamada de Ada, é um desses filhos superprotegidos, que vive trancafiada e só sai de casa com Dakko, o caçula, ocasionalmente. Mas a volta para casa do irmão mais velho, Akim, por quem ela nutre um afeto que parece impróprio, mas que em verdade é fruto do desespero e da possibilidade que enxerga nele de escapar, acaba sendo a fagulha que faltava para avançar nos conflitos e modificar as coisas. Unclenching the Fists é a jornada de uma vitima que não aceita mais ser vitimada. Sente-se muito e sente-se tudo com Ada, cada grito, cicatriz, cada abrupta tentativa de libertação (seja tentando consumar com o stalker Tamik, um namoro/noivado, que naufraga pelo simples fato de que meninos são crianças) provoca o mais catártico desespero.

Perdedores

Unclenching the Fists se passa no Cáucaso, um barril de pólvora que fica sempre em ponto de ebulir. A principal cidade da região, Beslan, está vizinha à Chechênia e em 2004, um grande massacre ocorreu numa escola que vitimou centenas de reféns. A alguns quilômetros fica Mizur, um distrito industrial que é o retrato da desolação e onde reside um pai e dois filhos estilhaçados por traumas e fantasmas. O filme tem como principal idioma o dialeto dos cabardianos que introduziram o Islã na região no século XVII. São islâmicos, semi-autônomos e lutam pela independência da Rússia, Ada, seu pai, irmãos e parentes ou conhecidos, que se reúnem talvez na única cena afável de Unclenching the Fists, uma espécie de piquenique noturno.

Unclenching the Fists
Cortesia Mostra SP

“Eu quero me sentir parte desse mundo de novo, completa. Ou posso ficar assim para sempre.” Ada apela a Akim para ter esperança, mas ao mesmo tempo – e os closes ups estão ali, cirúrgicos e quase confessionais – não sabe mais se conseguirá manter a sanidade para poder desfrutar da vida fora do cárcere familiar. Kira amplifica as tensões de tal forma entre os três homens da família de Ada que Akim se exaspera por não saber como solucionar o problema, Dakko outro chora por ser apenas infantil e o pai silencia, sofre uma paralisia traumática. Esse pai, por mais que seja louco de querer mantê-la presa, por medo de mais violência, ódio e dores, estacionar o tempo e manter a situação insustentável não é opcional.

Não adianta mais reter e querer manter ali, proteger – ela quer viver. Crispar os punhos ao redor do corpo e prendê-la junto de si; a doença abala, os punhos se abrem. Ada aparentemente é livre para ir, porém acarinha as mãos do pai e se mantém dentro do abraço apertado. Unclenching the Fists trata de melancolia e fúria, dosadas entre o amor e a repulsa no seio familiar. E complexifica olhar a jornada de uma mulher, russa, oprimida por todos os homens da sua família e também pelos estranhos, que vive encarcerada com olhos de uma mulher que é livre. Que é feminista. Que cobra da cineasta um engajamento ou um determinado tom em consonância com o que vai de encontro com as pautas atuais, sendo esta uma leitura de mundo minimamente estreita e demasiadamente liberal.

Unclenching the Fists
Cortesia Mostra SP

Se o cinema permite empatizar com outras realidades, conhecer cinematografias, ele também oportuniza por meio da experiência do espectador o engajamento ou afastamento para que a recepção de determinada história perpasse um entendimento e provoque uma conexão. Apartados do que entendemos como uma juventude dentro do escopo da normalidade, aqueles jovens, em especial aquela menina, mulher, Ada, deveria querer restaurar seu frágil corpo e identidade para recomeçar. Porque? Se estar pela primeira vez, pegando a estrada, numa moto, sentido-se livre, capaz de deixar o que foi ruim para trás e esquecer, basta.

Começando a desfiar um novelo de lã que lhe foi dado por Alexander Sokurov em 2015, quando foi sua aluna num workshop de cinema – junto com Balagov – Kira relatou, em uma entrevista à Variety que uma das lições do mestre que vem buscando aplicar é mostrar em seus filmes como ama, como vive, como as pessoas de seu lugar tratam umas às outras, como a sua família foi constituída, a maneira de dar consistência a sua obra. E esse mergulho nas peculiaridades da Ossétia do Norte é vivido e aparente em Unclenching the Fists.

Um grande momento
“Eu colecionava brinquedos quebrados na infância”

[45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

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Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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