- Gênero: Comédia
- Direção: Luis Pinheiro
- Roteiro: Ian Deitchman, Caco Galhardo, Renata Martins, Carla Meirelles, Kristin Rusk Robinson
- Elenco: Pedro Ottoni, Gabriela Dias, Linn da Quebrada, Yuri Marçal, Maíra Azevedo, Jonathan Haagensen, Sol Menezes, Lenita Oliver, Iara Jamra, Digão Ribeiro, Neusa Borges
- Duração: 120 minutos
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Um dos planos finais de Vale Night, se não o clímax do filme em seu choque de encontros e revelações mudas, é simbólico, expressivo e contundente: oito atores negros estão abraçados, relegados ao chão de uma passarela de pedestres, mas visivelmente felizes, em comunhão com seus destinos e plenos de significados. O que está em cheque não é apenas o imagético da coisa, que já é potente por si só, mas essa movimentação para a existência dessa imagem, de congraçamento e união em uma produção leve, com aspirações populares sim (e porquê não?), sem jamais deixar de perceber sua função dentro da indústria, de visibilizar narrativas periféricas.
O diretor Luis Pinheiro, que também já tinha levado às telas uma adaptação da obra de Maitena, Mulheres Alteradas, mais uma vez adentra um terreno pantanoso. Homem, publicitário, branco, o diretor depois de se debruçar sobre o universo feminino, agora adentra os corredores apertados de duas comunidades paulistas – onde o filme se passa inteiro – para mostrar os percalços diários de uma fatia desse grupo de pessoas, especificamente os jovens sem muita perspectiva, por motivos óbvios. Diferente de seu longa de 2018, ele consegue domar (um pouco) seus impulsos tendenciosos à estetização exacerbada e encontrar um tom que converse com o universo e seus personagens.
Pinheiro é um homem da agilidade, do ritmo desenfreado, e isso faz parte da construção de sua obra, que também passa pelo longa A Garota da Moto e a série Samantha!. Seus cortes velozes dos longas anteriores, aqui, saem parcialmente de cena porque sua ideia é conjugar a febre das 24 h no qual o filme se ambienta, com um nervosismo que se conecta com a urgência do tempo encapsulado e também com a pressa que a juventude encara sua mobilidade, naturalmente. No lugar do picote anterior, temos a entrada em cena dos planos sequência, que basicamente resumem os dos primeiros momentos do filme, um passado próximo e o presente atual. São sequências divertidas e bem boladas, principalmente pelos truques que Pinheiro insere no plano para dar liga aos eventos e às imagens, que soam sempre ininterruptas embora nem sempre sejam.
Ou seja, há uma preocupação de produzir material digno, de qualidade, com nível de produção que não deixe nada a dever às suas influências, e que coloque no centro da narrativa vidas pretas de periferia em momento de encruzilhada, ou seja, no dia a dia normal, infelizmente. O diretor não observa aquele lugar com exotismo de linguagem, mas também não paternaliza as ações de seus heróis; ok, trata-se de uma comédia para jovens adultos, o que quer dizer que suas atitudes estão sendo julgadas mais pelo espectador (que deve fazê-lo) do que pelo roteiro. Trata-se, acima de tudo, do entendimento de que há juventude, há inconsequência e também há falta de oportunidades, para cada um dos retratados.
Provavelmente Vale Night será acusado de estereotipificar suas personagens, colocando-as em lugares de exceção onde se espera, ou relegando sua discussão como óbvia, e até acusações de uma certa apelação. Não há, contudo, uma tentativa de tratá-los na sanha do naturalismo, como tão bem realiza André Novais Oliveira (de Temporada), mas de usar o cinema de gênero, no caso a comédia de erros, e ressignificá-la entre corpos sem representação e com sonhos represados por deslizes da contemporaneidade (leia-se falta de educação e de entendimento sobre seus próprios desejos), esses sim de cunho normativo. É uma salada que pretende olhar para o outro lado do cinema pop e perguntar: Brasil, por onde anda o entretenimento que também acesse outras realidades, outras etnias, outros modelos fora da norma tão comumente apresentadas?
Ainda que o roteiro escrito a inúmeras mãos não contenha as mais lapidares frases, que arranham mais ou menos o ouvido do espectador de acordo com a intensidade de cada momento e da entrega de cada ator em cada momento, é muito feliz observar seus espaços de fala em tela. Precisamos lapidar com carinho os talentos de Pedro Ottoni e Gabriela Dias, os protagonistas por onde o filme se alicerça; um futuro além do promissor os aguarda se forem bem encaminhados, carismáticos e funcionais. A presença de Maíra Azevedo, a influenciadora Tia Má, no elenco mostra que também há chances de brilho para ela, se quiser investir em outras paragens. A participação de Linn da Quebrada é a certeza de que o filme pretende olhar para além de um lugar estanque, movimentando a narrativa para caminhos sempre surpreendentes.
O que aquela imagem citada na abertura do texto então representa, para Vale Night e para um pretenso olhar futuro a um cinema que contemple periferias com mais frequência e urgência? O entendimento de que a violência não deveria matá-los com tanta frequência, mas já que a tragédia continua acontecendo infelizmente, que ela seja externa ao campo de energia afetiva criada embaixo de suas asas. A rápida sequência posterior exibe o retorno do sonho, a retomada da possibilidade de futuro, e uma picardia envolvendo especificamente Linn, integrante do elenco. Vale Night termina clamando, introspectivamente, que a arte sempre será o espaço da criação de uma realidade não alternativa, mas reflexiva e refletida no que de fato nosso tesão nos lega.
Um grande momento
A cracolândia