Crítica | Festival

Vera

Em busca de quem se é

(Vera, ITA, AUS, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama, Documentário
  • Direção: Tizza Covi, Rainer Frimmel
  • Roteiro: Tizza Covi
  • Elenco: Vera Gemma, Daniel De Palma, Walter Saabel, Sebastian Descalu, Annamaria Ciancamerla, Giuliana Gemma, Asia Argento
  • Duração: 115 minutos

Existem os documentários, que tentam focalizar o máximo da realidade possível daquilo que está sendo filmado – digo nesses termos, por saber que um tanto de naturalidade desce pelo ralo assim que a câmera é ligada. Existem os ‘mockumentaries’, que são uma espécie de documentários falsos, feitos nas mesmas cartilhas, mas que simulam personagens fictícios e ocasiões idem para fins de uma outra verdade, igualmente e ainda mais suposta. E existe um terceiro caso que vem sendo utilizado com alguma frequência, que é uma espécie de mix entre os dois casos. Temos aí um pé na veracidade, em personagens com história de vida real, embasados em seu próprio cotidiano, mas que as tintas de uma ficção invadem aquele universo, tudo de mãos tão dadas que fica difícil precisar onde começa um e termina o outro. Nesse campo, temos Vera.

Os diretores Tizza Covi e Rainer Frimmel trabalharam costumeiramente juntos em outros documentários, e aqui encontraram uma figura tão ímpar, inusitada e fascinante que talvez o maior acerto tenha sido realmente identificar um caráter fabular ao que ela agrega. É uma energia verdadeiramente colorida por tons de melancolia e efervescência, um alimentando as ausências do outro. Ao ler essa figura reluzente como se fôssemos vítima de um golpe coletivo arquitetado por quem está em cena, direção e roteiro se encarregam de eletrificar uma corrente que perpassa a produção, deixando-a tênue até o fim. Não faz sentido escarafunchar os detalhes do que é visto, podendo perder as delícias arquitetadas em cena, e que transformam a experiência com Vera em um momento singular. 

Vera
Covi Frimmel/Cortesia Mostra SP

Portanto, pouco importa se o que estamos assistindo em Vera é oriundo da realidade mais profunda ou se de um escárnio fictício dos mais sensacionalistas. O que vale é o esforço coletivo mas que parte de Covi e Frimmel em tornar essa existência muito interessante e charmosa, ainda que fora dos conceitos padrão desses termos. Vera é, acima de tudo, uma mulher que não se estabelece em padrões. Sua existência, de acordo com as imagens, se encontra em estado de absoluto vazio tão concreto, que a ela resta mendigar afeto entre suas vítimas. Seus erros são recorrentes e vemos através dos encontros com temas passados que ela está sendo eventualmente recobrada a respeito do que já fez e do que já foi, que hoje não existe mais. A glória pessoal ficou exclusivamente no passado. 

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A quem não foi devidamente apresentado, Vera é Vera Gemma, filha do lendário Giuliano Gemma, um dos grandes astros do western spaghetti na História, falecido há quase 10 anos. Vera não vive às custas da fama de seu pai e até se incomoda com essa sombra que se projeta sempre que o assunto vem à tona, porque tudo sempre acaba sendo sobre ele. Nunca conseguiu ser a artista que queria por ser projetada em comparação a ele, e nunca ter conseguido suplantar isso. O vazio de seus dias produzem cenas impagáveis, como a da visita ao depósito de guardados, ou diálogos com seu motorista Walter. Tudo isso porque Vera se recusa a ser algo único; ela quer é ter muitas camadas, coisa que nunca lhe foi permitido, tendo o seu tamanho e do seu pai.

Vera
Covi Frimmel/Cortesia Mostra SP

A verdade é que poucos nascerão Fernanda Torres, Michael Douglas ou Camila Pitanga. A grande maioria será como Vera Gemma, uma pessoa que, com erros e acertos, nunca conseguiu sair do lugar. Vera tem seus excessos, com o encompridamento de sua duração, mas isso não é o suficiente para retirar da produção suas muitas qualidades. É um lugar de paixão, esse que o filme lança pra sua personagem e ela pra vida, do qual ela extrai muito prazer. Inteira em cena, ainda que reproduzindo uma realidade alternativa, Vera é reconfigurada pelos hábeis Covi e Frimmel, dando muitas deixas de uma busca por identidade pessoal, e talvez por uma última sensação de afeto possível. 

Um grande momento
O teste

[46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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