(Victoria, BEL, 2020)
Premiadas no Festival de Berlim, na Bélgica e em Portugal, as diretoras Isabelle Tollenaere, Liesbeth de Ceulaer e Sofie Benoot investigam em Victoria um lado meio obscuro da imigração, quando ela é feita internamente, por motivos sociais e/ou emocionais, e que não aplacam as ausências materiais e ampliam os abismos entre os espaços e quem os ocupa, eventualmente. Produção belga com personagens e uma realidade americana mas que podem ser absorvidos por realidades distintas, já que as perdas emocionais sobre as quais o filme se debruça vão além dos Estados Unidos para alcançar melancolias diversas, faltas ancestrais e uma movimentação constante de fuga típica de minorias perseguidas, que, inconscientemente, sempre se colocam em lugares desvalidos.
É fácil observar que a narrativa corre para o lado de que povos perseguidos através da História tendem a, instintivamente, refugiar-se em ambientes afastados e tão abandonados quanto si mesmos. No centro do roteiro desse documentário com ares de ficção está California City, cidade do estado da Califórnia que vive à margem do que lhe rodeia. Com cerca de 14 mil habitantes, Victoria explora a situação demográfica da mesma, quase em situação desértica e não apenas no visual. Essa posição visual acompanha o estado interior de Lashay Warren, um dos novos pioneiros a tentar reconstruir não apenas a cidade inacabada, mas também a si mesmo.
Vivendo de estranhos “bicos” como a limpeza de estradas abandonadas ou vasculhando em meio a semiáridos absolutos, Lashay chegou com sua família a esse lugar que é um não-lugar, que não cresceu, não se formou, não evoluiu, ou seja, é um lugar que finge existência, e com essas características, a própria situação do protagonista encontra respaldo nessa ambientação sem vida, onde a movimentação de tumbleweeds (aquelas bolas de feno que costumam correr com o vento por regiões inexploradas) passa a ser um evento diferenciado. Ao longo de Victoria acompanhamos um absorver ao outro, sujeito e ambiente tornando-se um só, ambos em situação de abandono.
Enquanto a cidade é olhada pela lupa que hoje conhecemos como Google Maps e assim sua inexistência se agrava ainda mais (“não há jovens aqui”, como se o tempo arrastasse a vida do lugar), o homem é filmado como um resiliente habitante do seu próprio escombro particular, sem perspectivas para um povo que se formata pela sociedade nesse lugar ausente, presos a histórias que estão constantemente não acontecendo, e reproduzindo às próximas gerações novos sentimentos de deslocamento constante, como se nenhum lugar os merecesse pertencer.
Por rápidos 70 minutos de filme, somos contemplados com uma constância de tempos suspensos de acontecimentos, onde a vida não quer construir possibilidades. Ancorado nesse caráter observacional diário dos parcos eventos a se desdobrar, as diretoras traçam um paralelo entre os peregrinos originais que tentaram elevar a cidade há 60 anos atrás e o estado de coisas que levou o lugar a abrigar sobre-vidas e seus desterros particulares, como uma característica não restrita a Lashay; a informação de que precisam andar 1h e meia até a escola mais próxima para aprender sobre a História local não poderia carregar mais melancolia.
Apesar desse aparente desligamento das construções narrativas que acompanham um longa-metragem, as três diretoras belgas criam um ensaio empático sobre povos constantemente eleitos às margens da sociedade, que os escolhe nada aleatoriamente pra continuar reproduzindo vida afora os apartheids que não cansam de serem encaixados em cada um deles por uma sociedade que está acomodada em fazer mover sua ancestralidade perniciosa. A reprodução constante desses hábitos mantém o mundo girando eternamente para o mesmo lado, enquanto o outro está relegado à cidades que nunca serão fundadas.
Um grande momento
“No futuro, acharão meu nome escrito nessa pedra”