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A Mulher Rei

Ventos da mudança

(The Woman King, EUA, CAN, 2022)
Nota  
  • Gênero: Aventura, Drama
  • Direção: Gina Prince-Bythewood
  • Roteiro: Dana Stevens, Maria Bello
  • Elenco: Viola Davis, Thuso Mbedu, Lashana Lynch, Sheila Atim, John Boyega, Hero Fiennes Tiffin, Jordan Bolger, Jimmy Odukoya, Masali Baduza, Jayme Lawson, Adrienne Warren, Sivuyile Ngesi
  • Duração: 135 minutos

Apesar de pouco inovador, o paralelismo que a narrativa de A Mulher Rei propõe, em sua ideia de representatividade, cabe muito bem em cena. São duas jornadas distintas que se complementam, uma sobre libertação e outra sobre ascensão. Tem a ver com chegar em algum lugar sendo uma jovem mulher preta, e tem a ver com alcançar um lugar como uma estabelecida mulher preta. Mas sabemos que, sendo mulheres e pretas, nada é garantido, nem a liberdade e nem a consagração, e ainda que enfim sejam, diariamente ter que provar ser melhor que as melhores, estar em lugar de excelência constante e nunca perder de vista um valor a ser considerado, é injusto. Nesse sentido, o filme que estreia essa semana nos cinemas é sobre o que se vê na tela, mas também muito sobre o que está fora; as ‘agojie’ do mundo real, como Viola Davis e Thuso Mbedu. 

‘Agojie’ era o nome dado ao exército de mulheres soldados, lançadas na tropa de frente do reino de Daomé, na África de 300 anos atrás. Um grupo de elite, superior em resultado ao exército masculino, e com responsabilidade redobrada dada pelos reis, na qual elas correspondiam à perfeição. Além disso, essas mulheres eram tão temidas pela população quanto admiradas, parcelas essas que abarcavam muitas vezes as mesmas pessoas. O filme nos situa nesse universo onde hoje fica o Benin, e recorta deles o momento onde começa a ser debatido uma necessidade de não permitir a venda de escravos para Portugal e Brasil, reorganizando as formas de obter lucro da nação e poupando a vida de seu povo. Nanisca, a general das ‘agojie’, é a voz de defesa principal a favor do fim da escravidão. 

A Mulher Rei
Sony Pictures

Fora da historinha contada pelo roteiro escrito por Dana Stevens e Maria Bello (sim, a atriz de Marcas da Violência roteiriza e produz A Mulher Rei), o filme quer contextualizar a saga de toda mulher preta na História, ontem, hoje e amanhã, dentro e fora da indústria do entretenimento. Vide os exemplos já citados: Davis, quatro vezes indicada e vencedora de um Oscar (por Um Limite entre Nós), não pode viver sob os holofotes sem trabalhar para manter esse espaço alcançado; Mbedu, jovem revelação da minissérie The Underground Railroad, provavelmente cresceu à luz avassaladora da própria Davis, que abriu as portas para muitas. Duas trajetórias distintas que conversam pelas dificuldades, pelas lutas diárias e pela necessidade de afirmação debaixo de um universo que não as privilegia, naturalmente. 

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A Mulher Rei também conversa sobre o papel social da mulher, de qualquer cor, em qualquer tempo, e que infelizmente parece ter mudado pouco nos últimos três séculos. As benesses dadas a homens ainda não são partilhadas na totalidade com o outro gênero; o filme coloca os homens como merecedores do amor, da paternidade e da vida conjugal, enquanto as mulheres só podem ser infalíveis como são, se abdicarem disso tudo. Não por escolha, mas por imposição social, as guerreiras do filme só podem ter espaço para o trabalho em suas vidas, concordem ou não. Mudou algo, das profundezas da África do século 19 para hoje? Ok, os avanços aconteceram, isoladamente, mas as discussões não cessaram, tampouco mudaram – taí as decisões a respeito do aborto, todas tomadas por homens, que não nos deixam mentir. 

Além disso, cinematograficamente, o filme dirigido por Gina Prince-Bythewood impressiona por transformar as dificuldades em realização. Orçado em 50 milhões de dólares, A Mulher Rei é um filme dirigido e protagonizado por mulheres pretas, logo o orçamento de 100 milhões que Gladiador conseguiu, há 22 anos atrás, não poderia ser disponibilizado aqui. A despeito desse racismo estrutural nosso de cada dia, a diretora de The Old Guard e Nos Bastidores da Fama concebe uma estrutura de escopo que não deixa nada a dever a um Coração Valente. Ainda que a escala da produção não seja tão excessivamente grandiosa como acostumamos a ver em produções similares estreladas por homens brancos, Gina corrige possíveis diminuições de superioridade estética com um trabalho impressionante de sua equipe. Em especial as composições de Terence Blanchard se superam, e o maestro entrega uma trilha sonora inesquecível e arrepiante. 

A Mulher Rei
Sony Pictures

Em uma discussão que também está calcada no campo do avanço das ideias, uma espécie de progresso que corre paralelo a um conservadorismo em cena, o filme tenta trazer ambiguidade a esse debate quando coloca essas mulheres para desempenhar papéis tão tradicionais do masculino. Mais que isso até, acatando as doutrinas arbitrárias que decepam seu livre arbítrio. No entanto, é Nawi que surge como o vento da mudança a assolar o que não é questionado; há coragem de não se colocar suas protagonistas como motineiras da noite pro dia. A personagem de Mbedu semeia os ideais progressistas sem nem saber o que é isso exatamente, e A Mulher Rei, em suas entrelinhas, disseca valores políticos atuais sem jamais parecer inflamado ou explícito. Ao mesmo tempo, temos a consciência de que o novo vem chegando em cena com força total, renovando os ares ao redor de Daomé, e que o rei bígamo logo terá problemas de verdade com suas comandadas.

Além de empolgante, com uma vibração tão genuína, e uma textura convincente em suas cenas de ação (o ataque campal das ‘agojie’ contra o exército Oyé é impressionante), A Mulher Rei ainda nos fornece, por enquanto, a oportunidade única de recriação de imagens clássicas concebidas por e para homens. Além de Davis e Mbedu, Lashana Lynch e Sheila Atim estão igualmente sensacionais e, juntas, promovem o que deve ser uma das coisas mais importantes feitas pelo filme: trocar Mel Gibson, Russell Crowe e Gerard Butler por essas peles monumentais. Peles pretas que inspirarão outras peles pretas, uma cor tão desprezada por tantos séculos, aqui é exaltada e abrilhantada. Todo o melodrama empregado no roteiro, todas as coincidências que advém de sua narrativa, é muito pouco para diminuir o poderio que exala de uma das produções mais pulsantes da temporada. 

Um grande momento
A despedida de Nawi e Izogie 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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