Crítica | Festival

Iracema – Uma Transa Amazônica

(Iracema – Uma Transa Amazônica, BRA, 1975)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Jorge Bodanzky, Orlando Senna
  • Roteiro: Jorge Bodanzky, Orlando Senna, Hermanno Penna
  • Elenco: Paulo César Peréio, Edna de Cássia
  • Duração: 91 minutos

Iracema – Uma Transa Amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, é um filme que nunca deixou de ser agora. Rodado em 1974, quando a ditadura militar vendia a Amazônia como vitrine do “Brasil Grande”, ele acompanha a estrada da Transamazônica. O que está em tela está bem longe de ser o futuro promissor que se pregava, era um retrato de devastação, cinzas, abandono e exploração. O que se propagava como desenvolvimento era, na verdade, puro engodo.

A promessa oficial era integrar a região ao resto do país, ligar cidades, levar progresso. Mas, diante da câmera, o que se vê é um território violentado, tomado por tratores e toras de madeira. De um lado estava a miséria, de outro, a ganância. Nesse cenário a ficção se mistura ao registro documental, num gesto ousado e radical. A narrativa acompanha dois personagens ficcionais, Iracema e Tião, mas tudo em volta é real: as estradas abertas à força, os vilarejos improvisados, as serrarias que não param e a gente sobrevivendo do que pode. Quase não há fronteira entre o encenado e a verdade filmada.

Iracema não é mais a índia idealizada do romantismo. É uma menina pobre transformada em objeto de uso como a própria floresta. Edna de Cássia, sem experiência como atriz, ultrapassa a metáfora. A cada gesto dela expõe a crueza da violência diante da vulnerabilidade. Do outro lado, está Tião Brazil Grande – o nome como ironia pura – é vivido por Paulo César Pereio. Caminhoneiro cheio de frases feitas e orgulhoso de carregar progresso no caminhão, mesmo que sua jornada seja só de destruição. Ele acredita estar ajudando o país a crescer, mas o que atravessa é devastação. A contradição do personagem é também a contradição de um Brasil inteiro, que é vítima de um sistema que promete grandeza e, ao mesmo tempo, é cúmplice da engrenagem que consome tudo.

A câmera é seca, direta, sem artifício. Ela olha sem dó para as estradas sem horizonte, os vilarejos precários e as florestas ardendo. E se a linguagem é dura, é porque não há espaço para amenizar o que acontece. Há uma crueza que se aproxima do cinema marginal, mas aqui com um viés quase jornalístico, como se o filme registrasse evidências de um crime. Na verdade, é isso mesmo.

Se José de Alencar escreveu a fundação da nação na pureza da índia mítica, Bodanzky e Senna devolvem Iracema como ruína, prostituída, explorada e vendida junto com a mata. E aí está o motivo da proibição do longa e sua interdição até 1980. A ditadura não suportava ver a imagem invertida do próprio discurso, o “milagre econômico” transformado em lama.

Ao rever hoje Iracema – Uma Transa Amazônica, é impossível não reconhecer que seus traços seguem vivos. Porque o discurso não mudou tanto assim e a promessa de grandeza ainda circula, disfarçada de fé no progresso e sustentada na ideia de que basta abrir caminho, mesmo que seja sobre os escombros, corpos explorados e cadáveres. O filme nos lembra que essa retórica sobrevive porque é confortável acreditar nela, mesmo quando os sinais do desastre estão diante dos olhos.

Meio século depois, a transa amazônica continua. Só mudou de forma.

Um grande momento
O reencontro

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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