Cinema em linhas

14º Olhar de Cinema: Registros que marcaram

A 14ª edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba trouxe às telas os registros que perpetuam a memória. Em várias formas de transmutação, longas e curtas experimentaram a permanência em novas formas, com cores e sons. Houve uma preponderância documental, quase como uma validação a esse acesso ao passado. Porém, não faltou a ficcionalização de histórias que realmente existiram e até mesmo a criação de possibilidades em toda a sua verdade. A palavra se fez presente na maioria dos resgates em forma de narração, como se a contação fosse necessária para adicionar uma personalidade atual ao que existe. Colocar-se, existir, protagonizar para validar.

Esses registros de memória eram os mais variados. Ali estão filmes que marcaram nossa cinematografia, como Aruanda, que serve como pano de fundo e base de comparação ao curta-metragem A Nave que Nunca Pousa, de Ellen Morais. Sobrevivente, o quilombo de outrora surge assolado por um progresso falho, nocivo e inconveniente. Estão também registros caseiros que trazem a história familiar, como as fotos que se entregam em cerimônia no complexo Cais. O primeiro longa de Safira Moreira é uma colagem que representa o processo de luto e memória, tratando de tempo, ancestralidade e ligações intransponíveis, compreendendo sua não-linearidade e a impossibilidade de unicidade de forma.

Ao falar de ficções, é preciso destacar a multiplicidade de suas origens. Glória e Liberdade, de Letícia Simões, se debruça sobre os livros didáticos e a pouca – ou quase nenhuma – atenção que eles dão às revoltas populares ocorridas no Norte e Nordeste do Brasil. Em uma animação frenética, colorida e para lá de inventiva, um futuro se imagina onde novos países contam a sua história e fazem muito mais sentido. De outro lugar, Daniel Nolasco vai ao campo, nas fazendas de Goiás, e inventa uma história de amor e desejo que respeita a estética queer e seus signos. Quando o desconhecido se estabelece em seu Apenas Coisas Boas, fotos e pinturas trazem aquilo que o espectador conhece e também sente falta.

Entre experimentos e sensações está o musical silencioso e o teatro coreografado VOZ, ZOV, VZO, de Yhuri Cruz. O filme tem como ponto de partida uma carta, lida, encenada, cantada, coreografada e sentida por um grupo de amigos em um pequeno estúdio. De maneira única, o filme fala da ditadura militar sob uma perspectiva racializada. 

Marcas do inusitado chegam por meio de registros de estações meteorológicas que encontram no trabalho voluntário de vários estudantes a possibilidade de contar a história de uma floresta na República Democrática do Congo. A Árvore da Autenticidade, de Sammy Baloji, se divide em três partes. Além dos dados, diários falam de momentos diferentes, trazendo realidades distintas daquele local. Já as partituras de Medidas para um Funeral, de Sofia Bohdanowicz, são a lembrança de um concerto ouvido por poucos. Se paralelo a tudo existe uma pesquisa para conhecer a violinista virtuose para quem a peça fora escrita, com toda uma trama envolvendo família e um violino perdido, a possibilidade de recriar um momento tão raro é o que mais interessa.

Elementos do passado e possibilidades narrativas se mesclam, como Ontem Lembrei de Minha Mãe, de Leandro Afonso. A história em guarani sobre o fim das Sete Quedas é narrada em formato de podcast enquanto imagens oníricas se realizam na tela. E onírica também é a viagem de Lois Patiño em Ariel, com seus resgates agora não de um passado real, mas do passado inventado. Melhor dizendo, de vários passados inventados em uma ilha no Açores onde o tempo não existe e todos os habitantes são personagens de Shakespeare (claro que em algum momento Sycorax é lembrado). Quem lá chega, como a atriz Augustina, passa a viver eternamente um dos papéis do bardo.

Há ainda Aurora, com o caminho de João Vieira Torres pela reconstrução da história de sua avó, que, além do realizador, acaba por desnudar uma linha de violências contra as mulheres. Este retrato perpassa gerações e atinge todas as realidades. Já Dahomey, de Mati Diop, com toda a sua poesia e profundidade, traz estátuas e representações que vão muito além de seu significado original e falam de pertencimento, reconhecimento e sentido.

Se esses foram os destaques entre os filmes inéditos exibidos nesta 14ª edição do Olhar de Cinema, muitas outras imagens passaram pelas telas do festival trazendo a memória, buscando os arquivos e as formas de se registrar o passado. Temas, tempos, gêneros e formas escolhidos para contar suas histórias e deixar as suas marcas. Foi uma semana intensa e interessante tanto para aqueles que já conhecem e vivem o festival como para aqueles que acabaram de conhecê-lo. Que venham os próximos!

*A crítica viajou ao festival a convite do evento

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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