Drama
Direção: Sérgio Andrade, Fábio Baldo
Elenco: Anderson Tikuna, Rita Carelli, Begê Muniz, Emanuel Aragão, Severiano Kedassere
Roteiro: Sérgio Andrade, Fábio Baldo
Duração: 85 min.
Nota: 6
Em Antes o Tempo Não Acabava, Sérgio Andrade e Fábio Baldo voltam-se para a ruptura, a auto-afirmação. O momento em que, na busca por uma identificação própria, a tradição deixa de fazer sentido. Quando a vontade é se encontrar, rejeita-se o antigo e se busca um caminho rumo a uma personalidade que ninguém, naquele ponto da vida, sabe muito bem qual é.
O protagonista do filme é Anderson, um indígena da aldeia Tikuna, que não se identifica mais com os antigos rituais de sua tribo. Trabalhando como operário e cabeleireiro, Anderson quer ter seu nome de branco e quer se descobrir como indivíduo, em espaço, postura, sexualidade.
O longa-metragem, brevemente inspirado em histórias reais, faz um trabalho interessante ao misturar em uma mesma narrativa dois mundos muito afastados um do outro. As tradições indígenas dividem espaço com toda uma influência pop moderna. Logo no começo, um ritual de passagem é interrompido pelos créditos em cores vibrantes e música eletrônica. Beyoncé está ao lado de cantos indígenas, assim como a confecção da luva para o ritual está ao lado da montagem em série de aparelhos de ar condicionado.
Até mesmo uma mística divindade, incorporada como um homem branco, loiro e vestido com uma camisa de estampa divertida, tem o seu espaço, numa sequência que também expressa todo sincretismo do longa.
Porém, nem todas as boas intenções e boas idéias conseguem superar alguns problemas graves do filme. Alguns deles estão mais ligados com a técnica, o tempo de cena e a condução dos atores, mas não são essas falhas que ficam. O tema é complexo e não há como se perder de vista o fato de que são dois homens brancos contando a história de um indígena. Não que isso não possa acontecer, já que há esse espaço de liberdade na ficção e nem toda história que se conta de um indivíduo deve corresponder a todo o grupo social em que ele está inserido.
Há uma certa ingenuidade no roteiro que entrega lugares-comuns pouco proveitosos à trama em si, como na confusa cena em que o pajé fala sobre rituais que farão Anderson “voltar a olhar para as mulheres”, ou na montagem, que pode conduzir o espectador à mensagem de uma espécie de cura gay. São situações que, por mais que se exista a segurança da criação ficcional, abordam o tema dando algum espaço à má interpretação.
Antes o Tempo Não Acabava é um filme interessante, que funciona em sua complexa e corajosa mescla de realidades. Mesmo que tenha defeitos, merece ser assistido justamente pelo debate que ele provoca e que ganha força fora da sala de cinema, quando faz refletir.
Em um momento que se fala tanto em representatividade, um filme de ficção protagonizado por um indígena e que traz questões de uma tradição ancestral é muito mais inclusivo do que qualquer discurso que tenta encontrar preconceito no que acabou de ver. E, para constatar isso, basta pensar em quantos filmes você viu com um protagonista índio que vai além da questão da terra, do massacre branco, e enfrenta questões fundamentalmente humanas.
Um Grande Momento:
Batom.
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Patrícia, entendo tudo o que você disse e, inclusive, cito no texto os problemas de interpretação que o filme traz. Mas é um título que coloca o indígena em um papel diferente do que ele costuma estar nas telas, sempre como oprimido, perseguido e lutando por terras.
Acho que o mérito do longa é justamente querer contar uma história de ficção fazendo questão de dar a um índio um papel de protagonismo e buscando algo diferente do que foi feito até hoje. É uma história de ruptura, de auto-afirmação, que é vivida por um indígena. E esse tipo de ruptura, na ficção costuma demonizar traços da tradição com que se quebra, independente de gênero ou etnia.
Em um país que finge que os indígenas não existem, em que a maioria da sociedade sequer se preocupa com eles por nem se lembrar de sua existência, acho que esse tipo de inserção é , sim, positiva.
Mas entendo a contrariedade com algumas passagens do filme, como eu disse.
Como chamar de inclusivo um filme que oprime indígenas? Me espantei profundamente com o filme Antes o Tempo não Acabava, que concorreu na Mostra Competitiva do Festival de Brasília. Exibido pela primeira vez no Brasil, tem sido anunciado na mídia como um filme inovador sobre a temática indígena que foi bem recebido pela crítica estrangeira. Travestido de um formato/conteúdo modernoso, o filme promove uma pauta extremamente reacionária e condizente com os atuais tempos de retrocesso político. O festival trouxe três filmes com temática indígena, Taego Ãwa, Martírio e Antes o Tempo não Acabava. Os dois primeiros abordam a tradição indígena como fonte admirável de resistência e resiliência política em um mundo de relações violentas em que os colonizadores oprimem os povos originários e negam o direito à diferença e à sua reprodução em uma terra própria. Já o filme Antes o Tempo não Acabava parte de uma abordagem oposta. A pretexto de abordar o tema do choque entre a modernidade e as culturas ancestrais, o filme traz a trajetória peculiar de um índio que é oprimido pelas próprias tradições indígenas no meio urbano. Ele e sua família fogem da prática do infanticídio e da repressão à liberdade sexual. Como está implícito no próprio nome do filme, Antes o Tempo não Passava, a tradição indígena é associada de forma muito preconceituosa ao arcaico imutável, ao atraso, à repressão individual e até à violação de direitos humanos, enquanto a modernidade é construída ingenuamente como um espaço de transformações e liberdade individual no que se refere a questões religiosas/rituais e sexuais. O protagonista e sua irmã são oprimidos por velhos guardiões da suposta cultura indígena estática e anacrônica representada no filme, que impõem o infanticídio à força ou tentam praticar uma espécie de “cura gay” ritual ao jovem. Choca a forma equivocada e preconceituosa como o infanticídio é abordado no filme, que não condiz em absoluto com a realidade etnográfica dos povos indígenas; e também a forma como a homossexualidade indígena é encarada, invertendo completamente a realidade. Como se sabe, o homossexualidade é uma prática tradicional de muitos povos indígenas das Américas, anterior ao contato com o mundo europeu. Foi a colonização cristã que trouxe uma repressão profunda a essas práticas e a sua condenação moral. No filme, no entanto, são os próprios guardiões da suposta tradição indígena que tentam “salvar” o protagonista (palavra usada no filme) das suas inclinações homossexuais. Há inclusive uma associação completamente indevida entre o ritual de iniciação masculina apresentado no filme e essa tentativa de cura gay. Curiosamente, o ator que protagoniza o filme é um tikuna assumidamente homossexual e evangélico, que é exposto em cenas de sexo explícito. No mundo real, a cura gay é uma proposta justamente de certas igrejas evangélicas, mas na representação inconsequente do filme é o povo Sateré Maué que tenta curar seu filho desgarrado. Embora seja alardeado pelos co-diretores como um filme transgressor, a visão estereotipada e preconceituosa sobre as culturas indígenas se aproxima da visão evangélica fundamentalista que tenta criminalizá-las no Congresso Nacional tendo como carro chefe a falsa questão do infanticídio. A demonização das ONGs, que também é tratada no filme, misturando alhos e bugalhos, também tem afinidade com essa pauta conservadora. O herói do filme é um índio que é oprimido pela própria cultura indígena e quer deixar de ser índio. Ele quer ter um nome branco, ao contrário de muitos povos indígenas que lutam para ter seus nomes indígenas reconhecidos nos documentos oficiais.O filme promove a ideologia integracionista e assimilacionista que norteou o Estado Brasileiro durante séculos até o advento da Constituição Brasileira, que garantiu aos índios o direito de se reproduzir conforme seus costumes e tradições e que agora está sob forte ataque das bancadas evangélica e ruralista. É notável ainda a falta de responsabilidade com os povos indígenas, que são representados no filme de modo lesivo, e em especial com o povo Sateré Maué, cujas práticas são tratadas de maneira deturpada sem que fossem consultados minimamente sobre essa indevida exposição.Perguntados no debate posterior ao filme sobre as consequências políticas do mesmo para os povos indígenas, neste momento em que os seus direitos estão fortemente ameaçados, os co-diretores simplesmente negaram que o filme tenha qualquer componente político, sendo apenas uma expressão da liberdade criativa deles.
Como pode ser “inclusivo” um filme que deturpa completamente os costumes de um povo, no caso os Sateré Maué, que sequer foi consultado para a realização do mesmo, como prevê a legislação, associando-os ao retrógrado, à violação de direitos, ao imutável, em oposição ao mundo branco, que seria ilusoriamente um espaço de liberdade e transformação? Que inclusão é essa que apresenta o mundo indígena como o que deve ser superado, ignorando todo um vasto conhecimento sobre essas tradições que se transformam? Como pode ser inclusivo um filme que traz a questão do infanticídio de foram irresponsável e atribui aos índios supostamente arcaicos o desejo de cura gay, quando se sabe que foi a colonização cristã que reprimiu as práticas sexuais dos povos indígenas? Que leitura equivocada do filme.