Drama
Direção: May el-Toukhy
Elenco: Trine Dyrholm, Gustav Lindh, Magnus Krepper, Liv Esmår Dannemann, Silja Esmår Dannemann, Stine Gyldenkerne, Preben Kristensen
Roteiro: Maren Louise Käehne, May el-Toukhy
Duração: 127 min.
Nota: 7
“A rainha só tinha uma maneira de remover todas as dificuldades, grandes ou pequenas. ‘Cortem-lhe a cabeça!’, ela ordenou sem nem mesmo olhar para os lados”.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas
Um mesmo símbolo e suas representações contraditórias. Assim a Rainha de Copas chega ao cinema pelas mãos de May el-Toukhy. No filme ela é Anne, uma advogada especializada em defender crianças e adolescentes em situação de risco, assediados e abusados física e sexualmente; é também a madrasta que seduz o filho de seu marido, ainda menor de idade.
Com uma estrutura tradicional, que se baseia em na construção e manutenção do drama, o longa-metragem aposta nas reações dos espectadores às suas provocações. Se num primeiro momento faz com que a protagonista seja aceita e defendida por seus atos, apesar de toda a frieza da personagem, a aversão a ela também por seus atos, aqui com a frieza agindo de modo contrário, arremata a relação.
A complexidade da personagem, em todas as suas camadas, é pertinente com a alegoria escolhida pela diretora. A Rainha de Copas, como todas as rainhas do baralho, é uma imagem dupla. Tradicionalmente, à de coração, está reservada a identificação com o altruísmo, ela é aquela que, extremamente feminina e doce, deixa de pensar em si para fazer com que os outros estejam bem. A história desta carta é associada à heroína bíblica Judite, que salvou a cidade Betúlia de Holofernes depois de conquistá-lo e cortar sua cabeça.
A decapitação de Holofernes remete a outra representação da mesma rainha, aquela de Lewis Carroll em seu clássico “Alice no País das Maravilhas”. A rainha que muito pouco lembra a origem mítica da carta resolvia seus problemas fazendo com que eles desaparecessem com a morte. “Cortem-lhe a cabeça” era frase ouvida a qualquer contrariedade sofrida, por mínima que fosse.
Em Anna encontramos todos os caminhos possíveis da rainha. O modo impulsivo já está presente em seu altruísmo, quando confronta o agressor de uma de suas clientes na garagem, por exemplo. Há até uma obviedade na colocação de seu modo de ser quando da conversa com um de seus sócios. Nela estão os atributos da senhora de copas: o uso da beleza, astúcia, sedução, manipulação, compreensão, defesa da família, força e feminilidade. Cada qualidade é assombrada por um defeito, um anulando o outro. A incongruência é a mesma enfrentada cotidianamente, enquanto defende de abusos e abusa; enquanto quer se vingar de agressores e se vinga de denunciantes.
Tudo o que se vê leva o espectador ao encontro de uma pessoa anulada pelas incongruências que a fazem existir. Anna é um ser que se enxerga muito melhor do que poderia chegar a ser e se esconde em atos voluntariosos para dar sentido ao caminhar de uma alma vazia.
As sensações se misturam e nunca estão em um lugar muito confortável ou positivo. Diferente de qualquer coisa que se fale, não há qualquer espaço para confundir com moralismo se sabe-se que uma das partes da relação abusiva não tem a noção exata do que acontece e não tem como se defender. Esta escolha também não é dada ao espectador, já que a própria representação traça o seu caminho rumo ao repúdio, após escolhas próprias.
A habilidade com que May el-Toukhy destrói uma imagem e constrói outra é muito interessante. Quando opta por levar o espectador novamente ao ponto de partida do longa, confrontando percepções sobre um mesmo objeto, a diretora intensifica a força de sua obra. Rainha de Copas é um filme que sabe se aproveitar dos mitos para traduzir as mazelas e as contradições do ser humano, numa proximidade com a construção de uma nova mitologia. Mesmo que tenha suas facilidades e nem sempre saiba achar o tom no melodrama, é intenso e profundo.
Um Grande Momento:
A acareação.
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