História de Um Casamento (Marriage Story) é um longa disponível na Netflix, dirigido por Noah Baumbach, que conta a história de Nicole (Scarlett Johansson) e Charlie (Adam Driver), um casal que, após problemas matrimoniais, decide se separar de forma amigável, sem envolver advogados ou a justiça, para o benefício de todos, principalmente do filho, Henry (Azhy Robertson).
Contudo, ao perceber que a separação amigável não está fazendo a si qualquer bem, Nicole muda de ideia sobre não contratar advogados e, após receber a indicação de Nora Fanshaw (Laura Dern), advogada especialista em Direito de Família, decide contratá-la e informar a Charlie sua intenção de divorciar-se amigavelmente, contudo com a presença de advogados os representando, razão pela qual Charlie passa a buscar um patrono para representá-lo e garantir a manutenção da guarda bilateral de Henry.
Tal qual ocorre em um processo de separação real, fica evidente que Noah Baumbach teve o cuidado de retratar fielmente as nuances dessa fase da vida do casal, envolvendo os telespectadores nos dramas dos personagens e nos sentimentos de cada etapa do longo e doloroso processo de divórcio.
Se destacam os retratos fiéis à tentativa de alcançar um acordo, para a conclusão da separação extrajudicial, a qual é completamente frustrada em razão da disputa de egos entre as partes; ao surgimento de discussões que, até então, estavam sendo evitadas, mas acabam ocorrendo em razão da tensão emocional causada pelo processo; ao desconforto causado pela visita de uma conselheira tutelar, que se sabe ser a pessoa que irá definir se eles manterão a guarda, ou não, do filho; à tentativa de ambos os pais em sempre agradar a criança, apesar dos conflitos do matrimônio; e à hostilidade do ambiente do Tribunal, que se evidencia quando os advogados, em defesa de seus clientes, não demonstram qualquer sensibilidade quando atacam a parte contrária, imputando-lhes graves acusações, sempre em prol da sentença a si favorável.
Contudo, é importante destacar que, diferentemente do que ocorre em História de Casamento, em razão de a legislação brasileira prever o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, os pais de filhos menores de 18 anos ficam impedidos de realizar o divórcio extrajudicial (um simples acordo entre as partes, sem envolver a Justiça).
A recomendação do divórcio judicial sempre que haja um menor envolvido surge, justamente, para que se garanta a preservação da integridade mental e física da criança e do adolescente, a qual é garantida pela atuação do membro do Ministério Público, designado para analisar caso-a-caso e indicar se as pretensões das partes litigantes são compatíveis com a manutenção do bem-estar do menor.
Assim como bem retrata o filme, infelizmente, no processo de separação, é normal que ambas as partes sintam seus egos diretamente atacados ao analisar as propostas oferecidas pela parte contrária, mormente quando existe um caso de relações extraconjugais ou particularidades do caso concreto que tragam à tona sentimentos negativos de uma parte em relação à outra.
Movidos por raiva, portanto, não raro apreciarmos casos em que genitores requerem a guarda unilateral de seus filhos, para a satisfação do simples desejo de vingança, assim como há casos de pleitos de pensão alimentícia em valores exorbitantes, apenas com a intenção de humilhar a parte alimentante.
Pensando exatamente nas situações de divórcio que envolvam menores e que, por qualquer motivo, o interesse do menor não seja o foco principal da preocupação dos pais litigantes, a legislação brasileira determina que o Ministério Público atue em favor da criança, indicando qual o melhor sistema de guarda e, até, corrigindo o valor dos alimentos requeridos.
Vale destacar que não existe mais a necessidade de que a mãe detenha a guarda unilateral do filho, nem que o pai seja necessariamente obrigado a pagar pensão alimentar. Muito pelo contrário. Com a evolução do direito e da sociedade, verificou-se que as constituições familiares se alteraram – e muito – e, para garantir que todos os tipos de família fossem protegidos pelo Direito Civil, o direito teve de ser modernizado e reinterpretado.
Hoje já entende-se que a guarda bilateral pode ser muito mais benéfica para o desenvolvimento do menor e de sua relação com ambos os pais, bem como obriga ambos a serem os responsáveis legais, e acaba com a ideia patriarcal de que a mãe educa e o pai leva a criança para se divertir aos finais de semana.
Contudo, cada caso é único e, por isso, é possível que o sistema de guarda seja unilateral para o pai; que seja quinzenal o compartilhamento da guarda; que a mãe veja o filho somente aos finais de semana; que a visitação da criança seja sempre assistida por um conselheiro tutelar e etc., tudo a depender do caso concreto e balizado pela preservação do bem-estar do menor.
No mesmo sentido, a pensão alimentar, apesar de não haver limitação expressa na legislação, deve ser paga por aquele que não detém a guarda (ou seja, pode ser paga tanto pela mãe, quanto pelo pai), em um montante que se estipula a partir do binômio necessidade-possibilidade, isto é: deve-se pagar pensão alimentícia em um valor compatível às necessidades do menor (saúde, educação, vestuário e lazer) e à possibilidade de o alimentante pagar tal valor.
Com a evolução do direito, percebeu-se que de nada adianta cobrar valores estratosféricos daquele que não detém a guarda, a pretexto de garantir o bem-estar do alimentado, quando o alimentante não tem condições de pagar tal valor, afinal, se já não é tão raro verificarmos casos de genitores que descumprem sua obrigação alimentícia, mesmo tendo dinheiro, quem dirá no caso de não o ter. Por isso, surgiu a obrigação de se verificar as possibilidades do alimentante e, portanto, vincular a pensão alimentícia ao salário por ele percebido.
Outra questão que merece destaque em História de Casamento é o fato de que quem inicia o processo de divórcio é a mulher, fator que também só é possível graças à evolução, releitura e adaptação do direito, em caminho contrário ao sistema religioso e patriarcal antigamente imposto.
Vale lembrar que a legislação brasileira sofre forte influência do cristianismo, apesar de dizermo-nos um o]país laico – não por outra razão há inscrito no preâmbulo da Constituição Federal que a mesma foi promulgada “sob a proteção de Deus” -, e, em razão disso, nas primeiras Constituições brasileiras que tratavam do matrimônio, o mesmo era visto como “sagrado” e “indissolúvel”, isto é, não haveria sequer a previsão legal de divórcio no País.
Algumas razões para a Igreja e a legislação brasileira repudiarem o divórcio foram enumeradas por Mário Luís Delgado: “dissolvia a família”, “reduzia a natalidade”; “aumentava o aborto e a criminalidade infantil”; “comprometia a educação dos filhos, pela ruína da autoridade paterna e da piedade filial” (DELGADO, Mário Luís. 40 anos do divórcio no Brasil: uma história de casamentos e florestas. Disponível em: https://bit.ly/39O02TA. Acesso em 6 abr. 2020).
Foi apenas em 1977, com o advento da Emenda Constitucional 9, de autoria do senador Nelson Carneiro, que surgiu, no Brasil, a previsão do divórcio, com inúmeras e absurdas restrições a serem observadas, a saber, o divórcio só seria possível após prévia separação judicial por, no mínimo, três anos, ou após prévia separação de fato por, no mínimo cinco anos, e só se poderia divorciar uma única vez.
A justificativa de tais restrições era a de não haver uma banalização do divórcio, pois aqueles que não estivessem separados judicialmente ou de fato, pelo prazo mínimo previsto na Emenda, poderiam simplesmente voltar atrás de suas decisões, reatar o matrimônio com a pessoa, e divorciar-se novamente quando bem entendesse.
Talvez não tenham ponderado os legisladores deste período que o divórcio, contudo, carregava consigo um peso extremamente negativo, principalmente às mulheres, em uma sociedade machista, onde sempre que um homem pleiteava o divórcio, criavam inúmeras especulações sobre o que teria feito sua esposa para que ele a deixasse; e caso fosse ela a pedir o divórcio, dizia-se que era louca, queria vida fácil, dentre outros absurdos.
Não se pode olvidar, contudo, que apesar do demorado processo (que perdura até hoje), para o reconhecimento da mulher, enquanto sujeito de direitos, a EC 9/1997 foi de suma importância para o desenvolvimento do direito a divorciar-se e, inclusive, foi base para possibilitar a criação da Lei 6.515 de 1977 (Lei do Divórcio), a qual alterou o Código Civil de 1916 e o Código de Processo Civil de 1973, no que concerne à dissolução do matrimônio.
Em um primeiro cenário, havia a figura do desquite, a qual era predominantemente negativa às mulheres, que ficavam sempre sob a sombra da etiqueta de “desquitadas”, mas depois da Lei 6.515/77 surgiu a figura da separação judicial, permitindo que recebessem um novo selo: o de “separadas” e, caso respeitados os requisitos para o divórcio, o de “divorciadas”.
Foi com muitos anos de luta e de afronta ao sistema patriarcal que as mulheres conseguiram algum espaço para deixarem de ser consideradas promíscuas por simplesmente querer divorciar-se, a tal ponto que hoje se percebe claramente que a manutenção do status de casada, a qualquer custo, era muito pior do que a garantia da possibilidade do divórcio, afinal, a imposição da preservação do casamento era responsável pela manutenção de relações abusivas, de situações de violências domésticas, de relações extraconjugais e da infelicidade dos cônjuges.
Lado outro, verificou-se, ainda, que, em que pese o reconhecimento do divórcio pelo ordenamento jurídico brasileiro e, ainda mais, a possibilidade de a própria mulher requerer o divórcio, não houve a banalização do instituto e, muito menos, deixou o matrimônio de ser considerado importante para a maioria dos casais.
Hoje, o direito de divorciar-se já é reconhecido em muitos países como um direito fundamental e, em Países igualitários, tal qual Brasil e Estados Unidos – pelo menos na teoria e nas normas constitucionais -, tanto homens quanto mulheres detêm a possibilidade de pôr fim à sociedade conjugal, tal qual ocorre em História de Um Casamento, sem que sejam mal vistos pelo Poder Judiciário ou pela sociedade.
(Marriage Story, GBR/EUA, 2019, 137 min)
Drama | Direção: Noah Baumbach | Roteiro: Noah Baumbach
Elenco: Adam Driver, Scarlett Johansson, Alan Alda, Laura Dern, Ray Liotta, Julie Hagerty, Merritt Wever
História de um casamento História de um casamento História de um casamento História de um Casamento