(Black Christmas, EUA, NZL, 2019)
Ser mulher neste nosso mundo é: estar andando de noite sozinha na rua e, ao ouvir passos atrás de você, preferir que seja um animal selvagem a um homem, qualquer homem. Pesado, né? Mas essa é a nossa vida, durante todo o ano, em todos os meses, dias, horas e minutos. Natal Sangrento, dirigido por Sophia Takal, que também assina o roteiro ao lado de April Wolfe, é um filme sobre esse medo, e que apela para o inusitado para reafirmar e personalizar toda uma estrutura retrógrada, que vem sofrendo rachaduras mas é difícil de ser combatida: o poderoso e ultrapassado patriarcado, que está em todos, em nós inclusive.
A luta é constante e também está ali no filme, em pequenos gestos e batalhas diárias, em pequenos ganhos: a remoção de uma estátua que reafirma a discriminação; um abaixo-assinado contra um professor que não enxerga além do eurocentrismo, branco, masculino, heterossexual e cisgênero; a exposição pública de um abusador. Bastante, mas quase nada diante do que ainda existe. Natal Sangrento subverte a fórmula tradicional do subgênero slasher, e cria toda uma narrativa fantástica para dar conta desta realidade de desigualdade e menosprezo.
Produzido pela Blumhouse, que se firmou no gênero com Atividade Paranormal e levou às telas bons filmes como Creepy, O Presente e Corra!, o longa é vendido como remake de Noite de Terror (1974) e parte da mesma prerrogativa feminista, mas está mais para uma resposta do que para uma refilmagem. A premissa é a mesma: no Natal, mulheres com posturas fortes e determinadas passam a ser assediadas e ameaçadas. As ameaças são seguidas de mortes consecutivas por pessoas que não podem ser identificadas.
O rompimento com o original se dá justamente na condução da trama. Aqui não há a interferência dos homens para que as coisas se esclareçam e se resolvam, e nem a covardia de impedir uma resposta das vítimas. Em Natal Sangrento, a máxima da sororidade – que associa a força à união – dá às mulheres e ao grupo um poder que certamente, no cinema de 1974 ainda não era nem cogitado, e que, sem desmerecer Bob Clark pelo feito de décadas atrás, apenas uma mulher poderia executar a contento. Ainda que não se deva fazer restrições temáticas, pois todos podem falar daquilo que quiserem no cinema, as histórias sempre ficam melhores quando contadas por quem tem uma intimidade real com o tema.
Takal avisa a todos do que vai falar com a cartela inicial do filme, nas palavras do fundador da faculdade onde se dão as perseguições, Calvin Hawthorne (o sobrenome ser do único juiz que não se arrependeu dos julgamentos de Salem não deve ser mera coincidência). Além disso, a diretora estabelece uma linha direta com as espectadoras mulheres ao compor a primeira morte. Ali está um medo que parece já acompanhar qualquer mulher desde o dia em que ela começa a entender o que é estar sozinha, e isso desperta uma identificação que seguirá por todo o filme.
O roteiro não é nem um pouco comedido ao falar sobre o machismo nosso de todo dia, encontrando no limite do sobrenatural a alegoria perfeita para ele. Associações, traumas, posturas subservientes (“tudo está tão desorganizado”), a insegurança do macho ao se ver deslocado de seu lugar e metáforas, muitas metáforas, estão por todo canto. De lama negra ao coletor menstrual, do anjo de neve ao fogo, tudo tem o seu significado e encontra o seu ponto de conexão. O que se forma é óbvio? Sim. Mas já se sabe que nem assim funciona, não é mesmo?
A execução tem lá os seus deslizes, facilidades e alguma irregularidade nas atuações, embora Imogen Poots consiga se segurar bem como a protagonista. Há também o desembocar num final em outro tom, vários pontos acima do resto do filme, mas que vale pela catarse e pelo que significa dentro daquela construção ficcional. E é um programa eficiente, com uma boa construção de suspense e tensão, ideias visuais e um uso inteligente da luz para estimular o nosso sentido.
É um longa que comprova todo o potencial do terror como um gênero que transfigura a realidade sem precisar se afastar muito dela. Entre suas simbologias, Natal Sangrento trata daquilo que precisa tratar e deixa o seu recado. Se o medo de andar sozinha é compartilhado por todas, é porque nós não estamos sozinhas nesse caminho. E juntas, sabemos, somos muito mais fortes.
Um Grande Momento
Mexeram com as irmãs erradas.