Crítica | Festival

Normal

(Normal, ITA, SUI, SWE, GBR, 2019)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Adele Tulli
  • Roteiro: Adele Tulli
  • Duração: 70 minutos

Normal adj m+f
1. Conforme a norma; regular
2. Que é comum e que está presente na maioria dos casos; habitual, natural, usual
3. Tudo que é permitido e aceito socialmente

Vivemos em uma sociedade normativa, heteronormativa, para ser mais exata. Ou seja, pela norma estabelecida, as pessoas devem ter determinados comportamentos para serem consideradas socialmente. Os padrões de gênero, mais do que estabelecidos, são reafirmados a todo instante, desde o começo da vida até os últimos dias. É uma cobrança intensa e eterna. Sempre foi assim, mas está ainda pior nesse momento de retrocesso pelo qual o mundo passa. 

“Atenção, atenção! É uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa”

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Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos no governo de Jair Bolsonaro.
Festa do Cinema Italiano: Normal (2019)

O documentário Normal, de Adele Tulli, tenta acompanhar o desenvolvimento da imposição e demonstra como a frase explícita de Damares vai se construindo discretamente ao longo da vida. Se as imagens captadas são naturais, sua manipulação vem da montagem, que alterna momentos específicos de várias fases da vida ou atividades tida como corretas para cada gênero.

A primeira cena, com grávidas fazendo algum tipo de hidroginástica não conseguem antecipar a apreensão causada pela cena posterior, onde por muito tempo acompanhamos uma fofíssima garota. Levamos alguns momentos até entender o que está acontecendo, mas basta a próxima sequência para anteciparmos como todo o filme será construído. Se a forma se torna óbvia, com uma estética que vacila entre as intercalações e o corte bruto entre situações, Normal consegue se destacar pelo contexto. Na identificação de cada uma das passagens identifica-se essa construção de personas coerentes com uma sociedade que não consegue pensar fora daquelas caixinhas.

Festa do Cinema Italiano: Normal (2019)

O filme atravessa várias etapas da vida. Mostrando como sutilmente desde cedo as mulheres são ensinadas a assumirem os seus papéis dentro de casa, como gestoras, faxineiras, cozinheiras; e os meninos a investirem em atividades destemidas, ousadas e fortes. Algumas das imagens trazem discursos que são reafirmados. A igreja que diz que esposas devem perdoar seus maridos e a casamenteira atualiza o discurso que vinha disfarçado em forma de brinquedo de plástico. O discurso entranhado dentro de todos, porque não tem como fugir de uma opressão que vem disfarçada desde antes de falarmos as primeiras palavras e se torna explícita com o tempo, está em lugares que parecem ter conotações diferentes, mas na realidade não têm.

O filme explora muito bem dois exemplos: a despedida de solteira, quando a mulher age como se aquela fosse a última noite de sua vida, pois está prestes a não poder fazer mais nada (que 2020 o quê!); e em várias sequências de desespero por um corpo que esteja de acordo com o padrão ocidental vigente. É muito triste perceber que essa é uma prisão que não tem nacionalidade, idade, preferência. Ao mesmo tempo é desafiador olhar para aquilo e perceber o quanto é urgente se disfarçar dessas prisões psicológicas impostas.

O documentário perturba, apesar de não se aprofundar em questões mais complexas,  e se posiciona bem quanto a um dos quatro elementos de definição descritos por Joan Scott: “conceitos normativos que colocam em evidência interpretações do sentido dos símbolos que tentam limitar e conter as suas possibilidades metafóricas. Esses conceitos são expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e tipicamente tomam a forma de uma oposição binária que afirma de forma categórica e sem equívoco o sentido do masculino e do feminino”.¹

Não deixa de ser interessante, mas é preciso dizer que Normal tem os seus deslizes, principalmente pela quebra de todo o discurso de maneira abrupta e pouco encaixada com que trouxe no resto. Tulli tenta mostrar uma mudança, um enfrentamento, isso é óbvio, mas acaba misturando alho com bugalhos. Toca em outra questão, igualmente nociva e que precisa ser discutida, mas que está num outro lugar que não tem a ver com a discussão de gênero. Ainda assim, faz um bom trabalho tanto na construção imagética quanto no discurso. E destaca aquilo que é realmente importante. No fundo, tudo que está relacionado com essa pseudonormalidade não passa de mais uma ferramenta de poder. Simples assim.

Um grande momento
A menina e a pistola. 

¹ SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Disponível em https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/185058/mod_resource/content/2/G%C3%AAnero-Joan%20Scott.pdf

[8½ Festa do Cinema Italiano 2020]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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