(Pietà, BRA, 2020)
- Gênero: Experimental
- Direção: Pink Molotov
- Roteiro: Pink Molotov
- Duração: 5 minutos
A Pietà de Michelangelo é uma das esculturas mais admiradas, rememoradas e reproduzidas em outras áreas da arte, seja a literatura, o cinema, o teatro ou mesmo em outras categorias de artes plásticas. No campo imagético, muitos já reproduziram o Jesus morto nos braços da própria mãe, com inúmeros tensionamentos para inúmeros resultados; nesse Pietà dirigido por Pink Molotov, o trabalho imagético é desafiado a encontrar lugar nos espaços hegemônicos de pensamento cinematográfico, rasgando qualquer cartilha prévia e assumindo uma necessidade nova de ressignificar imagens.
Pink exibe com muita propriedade sua bandeira exigente de uma nova iconografia onde caibam novos signos, novos dogmas, novos preceitos, e isso sem desafiar qualquer moral que não seja tacanha, mas exibindo sua liberdade de recriar símbolos tradicionais sem pedir licença. Desde os primeiros planos, quando ainda esboça essa versão dourada e cintilante de um mito imagético apropriado pelo olhar cristão, o filme recusa a assumir pra si qualquer onda que o situe dentro de uma fôrma, exibindo uma plumagem nova dentro do que se convencionou a chamar “bom gosto”; o meu gosto é bom, o filme diz. E tá dito.
Há em curso duas vertentes na obra em questão: essa revisão histórica de um mito que as artes plásticas consagraram, e um processo que não foi iniciado pelo filme de reforma do lugar do Cinema, enquanto o que convencionou-se chamar como tal em mais de 100 anos. Em ambos os tomos, pede passagem uma visão personalíssima de Arte, definitivamente moderna e que anseia por questionar o pós. Ao reconfigurar para a periferia de hoje uma imagem tida como sagrada por muitos (religiosos e artistas), Pietà detona o grito imediato que figuras historicamente apagadas e inauditas exprimem em imagem e em verbo o que é possível: tudo. E porque não?
Contra qualquer tese de que precisaria arcar com desígnios X ou Y para ser considerada obra cinematográfica, a Mostra Tiradentes já rompe tradicionalmente os laços tradicionais a respeito de técnica e adequação, mas com a obra de Pink Molotov um passo além é dado. Se em um passado recente, petardos como a saga de Leona, A Assassina Vingativa viveu restrita a legiões de fãs que repetiram seus capítulos por muitas vezes na sombra injusta do Youtube, até a própria Mostra abraçar o quarto capítulo capitaneado pelo coletivo Surto & Deslumbramento, hoje algo Pietà simplesmente rejeita qualquer outra alcunha que não seja a que ela merece, obra cinematográfica – com toda sua sujeira hardcore, e talvez até por ela.
Abertamente iconoclasta e consciente de sua audácia, o filme clama pela voz de sua intérprete, e ela dá. Em rasgo de sinceridade típico de um encontro muito íntimo, a futura Virgem Maria rasga o verbo contra o desgoverno político representado pelo falso Messias no poder do país, pede para partir para um lugar imaginário (#WakandaForever), reclama pra si o direito de ser mais ficção e menos realidade. Pink obedece à sua entidade protagonista e a eterniza contra todos os padrões antiquados da tradicional família cristã brasileira, em um combo de fluxo de pensamento desregrado e absolutamente verdadeiro e uma repaginação da imagem, que se consolida como cinema ao radicalizar sua linguagem.
É complexo sair desse caleidoscópio de efervescência cultural, política, social, que rejeita rótulos por não capturar nenhum, e dar de cara com o resto do que estamos acostumados a alcançar em matéria de concepção fílmica, mas pelo menos no próximos seis dias sabemos que Tiradentes trará outros rasgos de juventude imagética para o espectador. Ainda bem.
Um grande momento:
“Estou saindo de férias”