- Gênero: Drama
- Direção: Heitor Dhalia
- Roteiro: Nara Chaib Mendes, Heitor Dhalia
- Elenco: Boy Olmi, Bela Leindecker, Gabriela Carneiro da Cunha, Tulio Starling, Nash Laila, Lucas Andrade, Naruana Costa, Gabriela Miziara, Sílvio Restiffe, Giulia Ouro, Nara Chaib Mendes, Carcarah, Carlos Morelli, Eduardo Pelizzari, Artur Maia, Aurea Maranhão, Daniel Aureliano, Daniel Passi, Duda Carvalho, Flow Kountouriotis, Inês Soares Martins, Isamara Castilho, Renan Ferreira, Tainá Medina, Tássia Dur, Vinicius Teixeira
- Duração: 106 minutos
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Se a ideia era fazer das tripas coração, provocando desconforto genuíno na maneira com que a câmera ou o personagem masculino/diretor teatral perseguem a atriz casta depois demonizada, pois obscuro objeto do desejo em cena, Anna atinge com louvor esse objetivo torpe.
Enquanto filme, Anna de Heitor Dhalia (de O Cheiro do Ralo), coloca vestes modernosas para, a partir das tragédias virulentas de Shakespeare, expressar uma “relação que ultrapassa a fronteira da criação e expõe o limite entre o desejo e a ética”. A parte grifada seria a storyline, da qual o filme é matéria diametralmente oposta. Porque se é para ilustrar imageticamente que Hamlet/Arthur (Boy Olmi), o velhaco diretor teatral, não ama sua musa recém saída da adolescência, Ofélia/Anna (Bela Leindecker), mas sim a manipula para alimentar seu ego e sadismo, pra que fingir um engajamento com pautas feministas ao invés de admitir que se tentou fazer um filme sobre inspiração e obsessão pouco inspirado, que só provoca raiva e aflição?
Se a tragédia da mágoa ou da vingança é Hamlet, o roteiro cinematográfico de Heitor e Nara Chaib Mendes é uma régua desastrosa na construção narrativa do filme alicerçado na indigesta relação diretor-atriz. E, diferente da basilar peça trágica do bardo inglês, que nuança os desejos e pavores de Hamlet, Ofélia, Horácio, Claudius, Gertrudes e Polônio, o existencialismo e a aferição da loucura a partir de fricções e situações onde os personagens denotam raiva e sofrimento, em Anna apenas à personagem-título é infligida dor.
Injustificada, a ruína e humilhação de mais uma personagem feminina no cinema obedece a visão do autor e haja mansplaining e assédio falseado como sedução professoral no arco de ascensão e queda de Anna. “Para ser Ofélia a atriz tem que ter vivido uma relação louca, obscura e ao mesmo tempo manter a ingenuidade que você tem”, diz Arthur umas duas cenas antes daquela em que leva sua presa para o matadouro e, entre jogos cênicos e de persuasão, a come. Antropofagica e sexualmente, ele condiciona a preparação, os ensaios e o treinamento para ela experienciar e ser a trágica heroína hamletiana em vida.
E é um deslize decorrente de uma falta de visão que cada enquadre do rosto lindo de Bela Leindecker (da série Desalma) só exprima sofrimento, lividez e pavor. A Ofélia de Anna não tem anima, compõe a paisagem como a Ofélia morta no lago e imortalizada por John Everett Milais. À atriz nunca é permitido conduzir suas ações mas sim se condiciona a aceitar as perversões do homem genioso “em nome da arte”.
Anna pode até intencionar, trazer aqui e ali falas desconexas — em algumas cenas muy verborrágicas — das personagens bradando feminismos, mas em nenhum momento o filme questiona o assédio ou a opressão, deixando, sim, o predador sexual agir e encurralar sua lolita, em cenas grotescas de sexo e em elaboradas representações — já no palco — de passagens da tragédia Shakespeariana com uma roupagem minimalista pós-modernosa.
Em entrevista na época do lançamento do filme no Festival do Rio 2919, Dhalia definiu seu filme como “uma experiência artística e estética bem radical”, porém, a proposta não guarda nenhum radicalismo, apenas a misoginia de sempre no trato com esses signos e personagens… Homem velho emasculado e mulher jovem, que significam a mesmice de lá da antiguidade clássica até os filmes doentios de Polanski (como Lua de Fel), Louis Malle (Perdas e Danos) e do incensado gênio que estrela e dirige/escreve aquela alegoria sexista que é Manhattan ou Poderosa Afrodite, todos sem alcançar a profunda sutileza de Satoshi Kon em Perfect Blue (devidamente corrompido, quer dizer, ocidentalizado, em Cisne Negro).
Eduardo Coutinho havia feito uma incursão maestra no universo e na rotina criativa e humana de uma companhia de teatro em Moscou, o Grupo Galpão a época dirigido por Enrique Diaz. Mas certos críticos de cinema vangloriam a colisão entre cinema e teatro para representar “a precisão na investigação dos desencaixes” em Anna, tal e qual em um outro filme de Malle, Tio Vanya Em Nova York; pela clara incapacidade de deserotizar um relacionamento tóxico. É impossível assistir impassível aos abusos “geniais” de Arthur e a passividade de Anna. Ou talvez ser mulher seja um impeditivo para compreender e laurear o gênio de cineastas que vilipendiam mulheres figurativamente para expressar a potência do seu discurso fílmico.
“Diretores… eles querem atuar junto”
Mas, dentre erros contumazes em termos de encenação e costura da progressão do drama em cena e na materialidade do filme cênico, Anna tem acertos que rendem afetos por si — pela experiência de assistir. A interpretação de Gabriela Carneiro da Cunha é o elo emocional que o filme de Dhalia mantém com o público
“Puta, nunca te amei de verdade!
Mas me fizeste crer que sim.”
O sarau bat macumba é a típica (e patética) visão paulistana artsy com sua encenação “queer” de Romeu e Julieta, onde o ciúme e a faceta mais grave da personalidade predatória de Arthur dá as caras. Quem surge nessa mesma cena como Hamlet — ou Ricardo III — batendo panela é um talento que merece um olhar atento, o ator brasiliense Túlio Starling.
Em realidade, Anna traz um enredo canônico e trágico que entrevê a ruína do homem emasculado pela jovem mulher que espezinhou e picotou apenas para fazê-la florescer.
“Força, Ofélia, vive”
Anna/Ofélia luta ao longo do terceiro ato para que seu desfecho não seja sucumbir e se afogar no ego do diretor. Ela transa, mija, encena e grita. O grito é o respiro de vida. Como diz o príncipe Hamlet, se dirigindo a sua plateia ou corte: “são espectadores pálidos de cenas grotescas” que assistem a peça e ao filme que se interpõem. E Anna, o filme, não se ressente em macular a instância espectatorial, pesando no olhar sobre a experiência ficcional ao trajar a mortalha escura morosamente.
Um grande momento
Calando o amor