Crítica | Festival

Germino Pétalas no Asfalto

A força de cada verdade

(Germino Pétalas no Asfalto, BRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Coraci Ruiz, Julio Matos
  • Roteiro: Coraci Ruiz, Julio Matos, Luiza Fagá
  • Duração: 78 minutos

Que prazer é conhecer Jack Celeste, um rapaz que acompanhamos o processo de transição de gênero com proximidade delicada, e com certa propriedade por quem o faz. Prazer porque Jack não só parece uma pessoa bonita por dentro e por fora, como também porque é dessas criaturas que parece que surgiram para fazer a diferença, em um estado de coisas onde a diferença é necessariamente celebrada. Germino Pétalas no Asfalto, produção em cartaz na Olhos Livres da Mostra Tiradentes, que vêm trazer novas amplitudes sobre a propriedade com que os processos transicionais são encarados por quem realmente importa, os próprios personagens em questão e suas vivências.

Coraci Ruiz vem da experiência bem dentro de casa, com Noah, seu filho cujo processo acompanhamos em seu longa anterior, Limiar, quase (ou literalmente) uma ponte direta para seu novo longa, onde Noah está presente mais uma vez – Jack é um amigo de Noah, e seu processo foi seguido pela diretora como parte integrante desse projeto abrangente de retratar uma realidade para qual a sociedade leiga ainda não encontrou respostas o suficiente. A proposta dela é trazer essas respostas? Não. Sentimentos tão complexos, idades tão sensíveis, corpos tão despadronizados, não são capazes de traduzir uma gama ampla de possibilidades.

O próprio Noah, desde o longa anterior, é um símbolo tão presente dessa esfera social, porque entende enfim que não precisa ter as tais respostas, quando na verdade ele só deseja encontrar um jeito menos insosso pra não ser, apenas, carne e osso (obrigado, Zélia Duncan!). A alegria de abraçar e reencontrar um Noah mais leve, aqui menos centralizado, é a mesma de encontrar um velho amigo e perceber que suas idiossincrasias é que fazem dele tão fascinante, tão completo em sua desagregação. Esse reflexo é possível quando Jack e seu entorno refletem outros desejos que não anulam os de Noah, mas compõem um mosaico de ainda mais diversidade a essas possibilidades.

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Por já compreender esse universo por dentro, Coraci consegue muito mais do que abertura para ouvir histórias de corpos possíveis. Transitando com liberdade por entre movimentos, assembléias, renomeações e divertidos relatos, Germino Pétalas no Asfalto se afasta de outras narrativas de readequação sexual porque também permite a leveza, a sinceridade, em meio ao corpo político que todos nós, LGBTQIA+, naturalmente temos. Ele encontra esses seres em situações cotidianas para eles, e também em lugares de exceção emocional – há um racha entre os personagens, há um retorno constrangido por uma mesa de trabalho. Essa naturalização das ações e de suas constituições também completam o filme.

É tão relevante observar o tratamento que pessoas queer estabeleceram depois da crise causada pela pandemia, levando alimento e alento a pessoas desassistidas pelos genocidas no poder, quanto a administração da dose de testosterona que muda Jack; é tão fundamental que o personagem se emocione com a nova certidão de nascimento, quanto é crucial entender que cada processo tem seu tempo e que cada pétala tem seu tempo para germinar. Em meio a tantos lugares possíveis, onde nenhum é capaz de abarcar o todo de tantas existências, o trabalho que Coraci começa a construir com seus dois filmes abre um clarão de debate social e de delicadeza estética a corpos acostumados a sofrer.

Germino Pétalas no Asfalto não tenta revolucionar a cinematografia mundial com a criação de narrativas desconstruídas de linguagem hermética e sensorialidade diferenciada, porque sabe que a revolução de suas imagens é capturar a dinâmica entre seus pares, suas duplas, até mesmo nas constituições unitárias por trás de cada realidade. Ao lado de seu co-diretor e co-roteirista Julio Matos, Coraci Ruiz encontrou uma gama de personagens tão bonita e diversa (como resistir a Helena Agalenéa?) que entendeu sua atuação dentro daquele contexto como responsável por reverberar suas vozes, seus sorrisos, sua emoção. É o suficiente. E é muito mais do que eles geralmente têm.

Um grande momento
Finalmente Jack

[25ª Mostra de Cinema de Tiradentes]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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