Crítica | Streaming e VoD

Carter

A outra face da angústia

(카터, KOR, 2022)
Nota  
  • Gênero: Ação
  • Direção: Jung Byung-gil
  • Roteiro: Jung Byung-gil, Jung Byeong-sik
  • Elenco: Joo Won, Kim Bo-Min, Sung Jae-Lee, Jung Jae-Young, Camilla Belle, Mike Colter
  • Duração: 132 minutos

Logo no primeiro momento em que encontramos o personagem-título (será?) de Carter, seu rosto é refletido em um quarto de motel, em um jogo de espelhos que o transforma em pelo menos cinco imagens distintas – o mesmo rosto e muitas representações. Esse novo sucesso da Netflix estreou na última sexta e faz todo sentido que esteja brigando pela primeira posição desde então. Porque raramente uma produção consegue transmitir as sensações que esse novo título persegue, com entusiasmo e excelência. Não se trata de uma ultra-exploração de uma novidade inesperada, mas uma reformulação de um padrão em voga nos últimos anos, aqui azeitado com uma bem-vinda empolgação. Há por trás do projeto uma clara vontade de cumprir seu papel da melhor forma possível, e de forma grandiloquente, o efeito é atingido com sobras. 

São as leis que regem a “gameficação” do cinema de gênero, que Mark Neveldine e Brian Taylor exploram à exaustão em seu cinema, mas que já foi assimilado até por Sam Mendes em um celebrado “isca para Oscar” (1917), e que já vem sendo igualmente difundido na Coréia do Sul por nomes como Yeon Sang-Ho (Invasão Zumbi). Seu conterrâneo Jung Byung-Gil (de A Vilã) compreende o trabalho desses nomes e recria uma ideia que foi já utilizada por Hiroshi Teshigahara em A Face do Outro. A ideia da recriação da própria identidade a partir da reconfiguração facial é uma fórmula tão deliciosa quanto utilizada de maneira parcimoniosa pelo cinema, que entende o poder dessa metáfora. Aqui, a perda da memória ajuda o protagonista a se embrenhar em um mundo onde seu rosto pode não ser seu, na verdade, e ele precisa acreditar na palavra de desconhecidos – todos o são. 

Carter
Son Ik-chung/Netflix

Para tal, essa imagem é reverberada pela direção a todo momento, o encontro do ator Joo Won com sua imagem refletida, que pode ou não representá-lo. Isso também ajuda ao filme incorporar os elementos do homem-jogo à sua narrativa, assim como a sua assinatura. Carter não sabe quem é, sua imagem pode ou não corresponder a sua personalidade, então é absolutamente crível que o filme tanto a explore em busca de respostas, quanto eventualmente a abandone em busca do ato. Nesses segmentos, Carter assume uma porção primeira pessoa que o aproxima de qualquer aventura de jogabilidade virtual contemporânea, e o filme consegue integrar sua ideia estética com uma criação de autor como o cinema de ação/gênero não normatiza com frequência. 

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Esse é um dos motivos que fazem do filme uma sessão exasperante, dependendo do espectador e de seu momento, até angustiante. Ele parte do princípio de uma ideia de “plano-sequência falso”, que não dura o tempo de Resgate, por exemplo. Na verdade, trata-se de uma versão mergulhada na adrenalina de Birdman, onde o corte só está em cena por meio dos efeitos especiais. Não se trata de uma ideia estapafúrdia para mostrar serviço e angariar elogios; Carter provoca uma sensação de excitação daquelas mais enervantes, porque não é procurada pelo prazer apenas, mas também pelo desconhecido provocado pelo medo. O jogo imagético se prolonga até os píncaros do desespero, porque o olho humano não pode se despregar da imagem, que rodopia e subverte e enerva e seduz, tudo ao mesmo tempo agora, de maneira bizarra e absurda. 

Com uma pitada – porque todo o cinema de ação dos últimos 20 anos deve algo a esse título – de Jason Bourne na questão da perda da memória, também não se trata aqui de uma homenagem à toa a uma série referencial. Também esse dado do roteiro está investigando posteriormente os limites da imagem, porque Carter não sabe a quem está a serviço, a quem deve proteger e qual o caminho a seguir, entre encruzilhadas diversas. Isso faz com que o filme nos forneça alguns momentos catárticos de embate entre espaços antagônicos, o direito e o esquerdo do plano, degladiando-se pelo protagonista, que não sabe a que lado seguir. Um dos momentos singulares do filme é quando a questão do jogo sai do espaço da ação estética e cai no campo intelectual, saindo do material imposto pelo console e indo para o jogo de tabuleiro – em qual veículo Carter deve entrar?

Ainda que sua longa duração comece a andar em círculos vez por outra, que o dinamismo das situações iniciais comece a se mostrar repetitivo no sentido de não acrescentar nada novo ao espectro geral, Carter emerge em um lugar onde a sofisticação entre a intenção e a realização não é uma norma. Seu diretor e roteirista não cansa de surpreender nossas sinapses (e a retomada do cenário original na reta final nos dá mais um bug positivo), e o filme está interessado, também ele, em fornecer uma clara franquia à Netflix. Pois que venha, porque não é todo ano que vemos tantas cenas espetaculares em sequência (aqui, literalmente), tais como a do avião – ok, todo filme de ação do ano resolveu nos fornecer cenas exemplares envolvendo os bichões do céu – e a do caminhão com os porcos. Nesse momento, a tensão saiu de cena para compreender que o exagero e o riso precisavam entrar em cena para desacelerar o coração, e toda a epopéia continuar posteriormente para manter nossa frequência cardíaca e ocular disparadas. 

Um grande momento
Entre tantos, o improvável balé no ar

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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