Crítica | Outras metragens

Escasso

Metralhadora giratória

(Escasso, BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Gabriela Gaia Meirelles, Clara Anastácia
  • Roteiro: Clara Anastácia
  • Elenco: Clara Anastácia
  • Duração: 15 minutos

A sessão de Propriedade no Festival do Rio 2022 é aberta por uma carta de apresentação das mais bem sucedidas. O filme chama Escasso, e é dos curtas metragens mais bem arquitetados da temporada. Não porque contenha nele alguma grande revolução estética, uma narrativa elaborada ou algum ineditismo formal. Pelo contrário, talvez todos os elementos apresentados já tenham sido antes. O que o coloca em lugar de claro destaque é a confiança que tem no que está exibindo, em como está e na forma absolutamente despojada com que somos inserido em um contexto dos mais surreais, e até inusitado. Por trás de sua provável repetição, nasce uma delicada investigação que atira para todos os lados, acertando quase sempre. 

Clara Anastácia é o nome da ‘mãe da criança’. Atriz, roteirista e diretora, ao lado de Gabriela Gaia Meirelles, a jovem moça é uma metralhadora de ideias, de postura e de feitos, cravando a periferia em lugar de ambição desmedida, porém sempre alcançada em suas buscas. Uma mulher em estado de exceção, pela cor, pelo gênero, pela geografia acessada, Anastácio consegue uma amplitude dentro do que apresenta de complexa adesão. Não é apenas a dificuldade de compreensão rápida, mas principalmente a que remonta ao combo de eventos que precisam ser mostrados, ditos, vividos e expurgados em cena, com voracidade por sua atriz.

Escasso
Cortesia Festival do Rio

A base é a que já conhecemos para um ‘mockumentary’, aqueles documentários falsos que já serviram grandes obras, de Rob Reiner (This is Spinal Tap!) a James Franco (Interior. Leather Bar.), passando até por Woody Allen (Poucas e Boas). Aqui, conhecemos Rose, uma jovem passeadora e cuidadora de animais, que vive atualmente na casa de uma amiga às custas de cuidar da habitação. Durante 15 minutos, entendemos que nada é exatamente como pintado – nem Rose está ali de favor, nem essa mulher sabe de sua existência, e talvez até ambas sejam a mesma pessoa. O que impressiona, acima de tudo, é como suas duas diretoras não cansam de provocar novos arranjos de realidade à sua obra, e só a obra. Porque o que é verdadeiro em Escasso, além de ser um material instigante e desafiador?

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Verdadeiramente engraçado, o filme nunca ri de sua personagem, não debocha dela nem a diminui. Como Anastácia está em cena e atrás das câmeras, além de produzir o que é dito, há total confiança na forma em como aquela mulher está se estabelecendo ao espectador. Sua persona é naturalmente provocadora, e vem daí a forma espontânea com que o público reage a ela. A atriz nunca a veste com menos do que ela necessita, e a seriedade em cena diz muito sobre a forma como Rose é embalada por Escasso. É uma interpretação que exala propriedade e afirmação, até mesmo política. O corpo de sua protagonista fala por si só, mas não somente; quem poderia imaginar que um ‘mockumentary’ poderia ser tão divertido e ao mesmo tempo extremamente pertinente ao estado das coisas no país?

Escasso
Cortesia Festival do Rio

Com uma montagem bastante inspirada de Bruno Ribeiro, Escasso consegue se comunicar com diversas fatias de público, mas principalmente não deixa de promover uma curiosa intersecção com um dito ‘cinema de qualidade’, ao outorgar sujeira ao seu resultado. Sem nenhuma vontade de parecer comportado ou circunscrito, Anastácia e Meirelles lavam a alma enquanto arremessam suas flechas. Sobram para influenciadores digitais mas também para historiadores e pensadores, para movimentos sociais e para políticos, em um arsenal que parece não ter fim em sua tentativa de destroçar quaisquer valores pré-estabelecidos. Na síndrome de um excesso de bom gosto, Escasso tem coragem em parecer verdadeiro e cru, esbarrando na cafonice desenfreada que esse próprio conceito de bom gosto monta. É daqueles momentos onde simplesmente ficamos felizes por estar aqui e assistir a uma porrada dessa.

Um grande momento
“deve ter uns 300 reais ali de moeda”

[Festival do Rio 2022]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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