- Gênero: Documentário, Drama
- Direção: Kaouther Ben Hania
- Roteiro: Kaouther Ben Hania
- Elenco: Hind Sabri, Ichrak Matar, Nour Karoui, Olfa Hamrouni, Eya Chikhaoui, Tayssir Chikhaoui
- Duração: 105 minutos
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Indo na contramão do que a Netflix e outros streamings vendem acerca do que vem sendo produzido para os documentários, incluindo o sucesso dos ‘true crimes’ que já chegaram a observar um cansaço, essa vitória de As 4 Filhas de Olfa no Festival de Cannes é bem-vinda, e seu olhar (que não é inédito, né mestre Coutinho?) oxigena o horror. Esse horror não é o que nossos sentidos estão acostumados a relacionar com a expressão, e sim algo palpável acontecendo nesse exato momento no mundo. A trajetória de mulheres trucidadas por dogmas religiosos, que acabam por aceitar o horror como algo comum e parte integrante da vida – uma vida que não está sendo colocada no lugar certo, na captura feminina do que está na essência de suas atitudes.
Não é fácil realizar o que Kaouther Ben Hania (indicada ao Oscar por O Homem que Vendeu sua Pele) propõe aqui, ainda que seja um lugar de sofisticação narrativa que outros cinemas já fizeram – como o Irã, com as experimentações de Abbas Kiarostami e Jafar Panahi. Estão em cena a Olfa real e a fictícia, as filhas reais e as fictícias, e é da organização que elas estabelecem entre si, do jogo que o filme apresenta para o espectador. Quando As 4 Filhas de Olfa se apresenta, sem julgar qualquer imagem ou personagem, a direção adentra não apenas no interior do que elas viveram, mas pega também uma estrutura cinematográfica de costura fina para tirar o melodrama esperado daquela visão. Esse é mais um aspecto que o feminino coletivo compreendido pela própria produção consegue demover de um olhar mais viciado.
A abertura já deixa claro o rumo da ideia, que vai mixar razão e emoção em lugares bem dispostos. Embora estejam em cena de maneira conectada, elas se mostram em seus lugares particulares porque sua voz é muito clara, e está amplificada pela estrutura do roteiro. Essas mulheres se conhecem e precisam estabelecer os lugares de identificação imediatos, entre si e entre elas e o mundo/espectador. De maneira explícita ao que foi feito no clássico Jogo de Cena, o lugar feminino apreende todas essas mulheres em cena – diretora, mãe, filha, atrizes, etc – e não as relega a uma só coisa. As 4 Filhas de Olfa são também o lugar de cada uma transformado, multiplicado pela lente para mostrar além do que se imaginaria dessa experiência complexa.
Olhar o espelho e ver no reflexo um passado que nunca deixa de reverberar, uma mulher que já não é mais a si, mas é uma representação sua de um passado que é mais que memória, é também permanência e rastro que fugiu. Porque ainda precisamos reviver a dor eterna de ser quem se é? Uma narrativa que se repete constantemente precisa estar impressa no cinema para mudar algo? Com algumas boas doses de caráter metalinguístico em cena, As 4 Filhas de Olfa reestrutura o que cineastas já fizeram, como Samira Makhmalbaf em A Maçã, com o entendimento de que suas vítimas precisam também ser ouvidas pelo mundo. Nesse sentido, Olfa e sua família representam não apenas um aspecto cinematográfico que é uma aposta narrativa, mas principalmente seu material emocional pedindo para ser outorgado.
Aos poucos, o que se mostrava um elo de conexão entre real e ficcional vai se alargando na experiência e ganhando uma voz única, e dissonante de um lado ou outro. Passa a ser algo verdadeiramente híbrido, que busca criar uma comunicação independente ao Cinema ou ao Fato. Tem a violência do fato, nas imagens de tv que contam a história do ponto de vista policialesco, e tem a construção do cinema, com a montagem encenando uma noite de núpcias a partir de diferentes ângulos de captação. A violência pelo qual os corpos reais passaram, voltam a sentir em proporções diferentes – a carne vilipendiada de hoje conversa com a de ontem, provocando o retorno da dor. No que o emocional já abala, o artístico não deixa de mostrar que o lugar de análise está correto.
O que Hania cria vai além de unir mulheres dispostas ao espanto; ela macula a realidade com cenas como a do buraco, onde suas personagens encaram no texto e no cenográfico a verdade brotada. E ela também enxerga no real uma porta de reintrodução da arte em As 4 Filhas de Olfa, quando apresenta as irmãs crescidas com um novo fruto do fanatismo ao seu lado. Uma família que se reconhece em seus pontos físicos, mas verdadeiramente ligada pela empatia moral de entender a perda muito maior que a dos entes. É a perda da humanidade que não cessa, mas que através dela observamos o nascimento de uma fagulha de arte. A arte que incomoda e nos faz igualmente vítimas, de algo com o qual precisamos conviver e não temos como mudar, como a família de Olfa.
Um grande momento
O primeiro encontro