- Gênero: Comédia
- Direção: Michel Gondry
- Roteiro: Michel Gondry
- Elenco: Pierre Niney, Blanche Gardin, Françoise Lebrun, Frankie Wallach, Camille Rutherford, Mourad Boudaoud, Vincent Elbaz, Sting
- Duração: 100 minutos
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Muito foi dito acerca do protagonista de Afire pela cinefilia média, a tratar de sua persona tóxica, sua arrogância, seus modos pouco convidativos, sua intransigência intelectual, e algum pedantismo. Pois bem, quem o fez – e julgou um personagem tão complexo e cheio de camadas sem analisar a estrutura da obra – e não assistiu a O Livro das Soluções, precisa conhecer Marc Becker, o cineasta que centraliza o novo filme de Michel Gondry. Um poço de (péssimos) hábitos idiossincráticos, o tipo é um desafio para quem não consegue analisar um estado de coisas sem se envolver emocionalmente com o que vê. E mesmo para quem consegue, é fácil entender quem se irrita e explode com o que está assistindo, porque o personagem é realmente, com trocadilhos, uma ‘mala’ bem pesada.
Gondry é um dos diretores mais interessantes a surgir nas duas últimas décadas. Egresso do videoclipe, com premiadas parcerias com Björk, Rolling Stones, Daft Punk e muitos outros, sua segunda incursão nos longas nasceu clássico, Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças – e sua única indicação ao Oscar se transformou um prêmio. Estava há 8 anos afastado do cinema, e aqui ele se aproxima do Cinema mais uma vez, enquanto temática, depois do delicioso Rebobine, Por Favor. Becker é um diretor, jovem e prodigioso, mas tão talentoso quanto, digamos, auto-suficiente; em teoria. Sua prepotência, que vez por outra se agarra em uma doçura, não o deixa perceber como é extremamente dependente de tudo e todos, e acaba por arrastar para a vala comum todas as suas relações, que não têm outra coisa a fazer que não desgastar.
Alguém mais maldoso poderia dizer que O Livro das Soluções não passaria de um auto retrato, mas com tantos anos de indústria, Gondry deve ter convivido com tantos tipos parecidos com seu protagonista, que é fácil de imaginar que a inspiração veio de todos os lados. Como se trata de uma produção sua, o que podemos esperar de cara é que seja o que mais uma vez é, uma ideia excelente desenvolvida com esmero virtual, e cheia de sacadas imagéticas irresistíveis. Quem conhece o diretor, pode respirar aliviado, porque a matéria-prima continua fazendo jus ao desenvolvimento; temos o estudo de personagem à disposição, alinhado a tais criações visuais que encantam e marcam sua carreira. Mas existe sim uma ideia aqui para que não estejamos diante só do que poderia ser considerado uma repetição.
Diferente de diretores que têm assinaturas visuais muito marcantes, como Wes Anderson e Yorgos Lanthimos, Michel Gondry utilizou suas habilidades para passear por muitas formas diversas de realização, e de aprimoramento dessa identidade. Em O Livro das Soluções, talvez por perceber o quão desgastante seria conviver por quase duas horas com alguém tão absorvente de nossa boa vontade, o realizador enxugou suas saídas visuais ao máximo para dar liberdade ao espectador. O que vibra então dentro dessa proposta, é a energia caótica que emana desse personagem, que está ligado nos 220 volts durante toda a projeção, para o bem e para o mal. O objeto do título acaba se tornando esse escape ao lúdico que é tão caro a Gondry, e que aqui é enxugado ao máximo em acertada decisão.
Podemos então dizer que a responsabilidade por transformar O Livros das Soluções em uma tradicional festa visual by Gondry, seja o corpo, os trejeitos e a explosão trazida por Pierre Niney para o protagonista. Geralmente contido, cercados de personagens tímidos e introspectivos, o vencedor do César por Yves Saint Laurent apesar de muito jovem, já tem uma filmografia extensa de personagens como o protagonista de Frantz. O projeto lhe faz bem e ele retribui ao filme, com um elevando o material do outro; nunca antes Niney tivera tão à vontade e disparatado, permitindo uma atuação quase circense, cheia de camadas que ele comanda com o próprio corpo. Sua absoluta coragem de topar o mergulho em alguém que tão facilmente é negativado nos permite observar, como no filme de Petzold, as nuances que seus atores carregaram para a tela.
Com isso, ficamos menos desconfortáveis ao criar uma zona de proteção entre Becker e as pessoas que ele praticamente escraviza emocionalmente. Sua humanidade consegue ser acessada aos poucos, e quando ele enfim encontra uma espécie de paz, O Livro das Soluções, filme e objeto, estão livres para terminar. A sensação é sim de estar a bordo de uma britadeira ambulante, mas Gondry e seu grande ator domam a expectativa de tal modo que, apesar de suas características abomináveis, terminamos a jornada em absoluta compreensão de seus atos. E, obviamente, discordando de cada um deles.
[47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]
Um grande momento
Becker maestro