Crítica | Streaming e VoD

O Assassino

O real maestro

(The Killer , EUA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Policial
  • Direção: David Fincher
  • Roteiro: Andrew Kevin Walker
  • Elenco: MIchael Fassbender, Tilda Swinton, Sophie Charlotte, Arliss Howard, Charles Parnell, Kerry O'Malley
  • Duração: 115 minutos

Existem dois David Fincher. Um é um artista tenso, preocupado com um outro recorte de Cinema que não é o seu, definitivamente, e que se deixa levar por uma preocupação excessiva ao que é dito de si. Esse profissional não entrega seus melhores momentos, mas existe sim fagulhas de brilho em Mank e O Curioso Caso de Benjamin Button. O outro diretor é um cara muito mais delicioso de assistir, porque é o oposto desse descrito acima, tendo em vista que sua matéria prima é a diversão; desse homem, saíram Garota Exemplar e O Quarto do Pânico. E o que acontece quando essas duas faces da mesma moeda se fundem? Aí temos um dos melhores do nosso tempo – A Rede Social, Zodíaco e Clube da Luta não deixam ninguém mentir. O Assassino, estreia de hoje da Netflix, precisa do teste do tempo, mas com pouca chance de errar eu diria que nasceu do híbrido. 

Na tela, temos uma espécie de prólogo ao que se desenrolará a seguir. A apresentação do protagonista e mais do que isso, de seu ‘modo de usar’, quase as funções impressas em uma bula. O homem de mil nomes não tem mil rostos nem mil regras; são apenas algumas poucas aplicadas ao seu serviço, que poderia ser qualquer outro, mas vindo de Fincher, esse qualquer se aplica ao assassínio pago, vulgo matador de aluguel, também conhecido como mercenário. Esse prólogo, sozinho, é definidor não apenas do lugar onde esse realizador está dessa vez, assim como do que será apresentado a seguir, que passa ao largo da narrativa de O Assassino. Quem estiver atrás de uma narrativa mais repleta de informações e curvas, é bom se preparar para o trabalho de Andrew Kevin Walker aqui, uma espécie de balizador do terreno construído por um ourives. 

Nesse mesmo prólogo, alguns recados subliminares reafirmam características do nosso tempo, como o direito à privacidade. Hoje, Janela Indiscreta não é apenas uma referência imagética, e sim uma declaração ao presente: ninguém mais está ausente do universo, tudo é vigiado, policiado e está ao alcance de quem assim quiser acessar. O personagem de Fassbender não está em posição diferente do que Mark Zuckerberg retificou há 20 anos, e Fincher imortalizou em 2010 – o futuro é hoje, e hoje todos têm e terão bem mais do que 15 minutos de fama. Se falta tempo à sociedade como um todo, sobra espaço para esperar, ironia das ironias; somos tragados pela expectativa constante ao próximo acontecimento, preparados para disparar. E fugir posteriormente, quando tivermos concluído nosso intento, de maneira acertada ou não. 

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Em O Assassino, o assassino pode ser todos nós, imersos em ter diversas verdades diferentes para cada função que nos melhor e conveniente for. Mas todo esse “discurso acadêmico” e teoria social vai por água abaixo (e interessa bem menos) quando o fluxo de eventos se desenrola de uma maneira tão milimétrica quanto vemos. Em parceria plano a plano, sequência a sequência, Fincher, seu fotógrafo Erik Messerschmitt e seu montador Kirk Baxter (os três premiados com o Oscar graças a trabalhos com ele) nos levam a um turbilhão de sensações. A mais vazia delas é a de que devemos apenas observar nosso queixo cair a cada avançar da ação; ao nos recuperarmos do que evidentemente está nos trilhos para acontecer, e nos seduz constantemente, o que se revela é um processo criado pelo trio para dinamizar uma orquestra em sua melhor função. 

Sem desmerecer o trabalho de Chad Stahelski à frente da franquia John Wick, Fincher aqui sofistica ao máximo o fiapo que funciona há 50 anos “um homem se vinga de tudo e todos pelo amor de alguém”, porque não se prende ao propósito e sim ao processo. É com essa veemência de observação que O Assassino avança, ao compreender que, no cinema, não é demérito que a fôrma ganhe mais brilho do que a massa. Não é processo de aceitação de uma máxima, mas de obliterar o poder intrínseco do código narrativo dentro de uma linha de produção que se sofistica independente do que está sendo contado. Quando o espectador compreender que o melhor da montanha russa não é de que tipo de aço ela é feita e sim da quantidade de loopings que ela dá, mais absortos pelo que um diretor como David Fincher tem para oferecer (de melhor) estaremos. 

Nesse sentido, ajuda muito que a narração de Fassbender não tenha uma lógica a ser seguida – em um tempo ela segue à risca o encontro entre a imagem e a palavra, e no tempo seguinte está preparada para criar um caos de intenções, passando ao largo das motivações. Isso quando os mesmos mantras são entoados durante toda a projeção: “atenha-se ao plano, não desequilibre, siga firme em sua intenção”. É o retorno de um grande ator, e o seu encontro com um diretor que sabe arrancar o melhor de quem se expõe a encontrá-lo. Não é o acaso que promove o que vemos em O Assassino, mas o fruto do que de melhor podem fazer em parceria pessoas que encontram o melhor maestro possível para a função designada. Não poderíamos encontrar um concerto superior a esse. 

Um grande momento

Fassbender e Swinton

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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