Crítica | CinemaDestaque

Zona de Interesse

Hipnotizados pela sombra

(The Zone of Interest, RUN, POL, EUA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Jonathan Glazer
  • Roteiro: Jonathan Glazer
  • Elenco: Christian Friedel, Sandra Hüller, Freya Kreutzkam, Imogen Kogge, Max Beck, Ralph Herforth
  • Duração: 105 minutos

Existe algo em Zona de Interesse que se posiciona entre uma montagem teatral e a visita guiada a um museu macabro, onde a sutileza do horror é aplicada em cada detalhe. Fazendo parte então de uma terceira via da arte, o Cinema, o filme consegue estabelecer um fino diálogo entre essas outras peculiaridades, em processo do qual a imersão não começa no primeiro plano mostrado, mas na tela preta onde a música de Mica Levi é projetada. Como um convite macabro para adentrar uma espécie com uma aparência fina para um pesadelo, o filme não nos prepara para o que virá depois. Essa é uma frase que não define a surpresa como algo a ser preservado, mas que constata que a artesania de Jonathan Glazer tem consciência de que, a esse momento, todos já tiveram uma deixa para o filme. Zona de Interesse nasce então do interesse em desvendar outras proporções de si. 

Assim como descrições prévias e particulares, o Holocausto em si é um tema que não se situa como um dos mais convidativos a novidades, mesmo quando se traveste de uma – não me falem de O Filho de Saul. Sentindo-se inspirado pelo desafio, Glazer nos transporta para uma câmera tão artificializada quanto o conceito que criou esses homens e mulheres andróides, capazes do máximo em cálculo e crueldade por uma limpeza imaginária. Em algum momento da projeção, me vem à cabeça a genialidade com que Lars Von Trier criou seu Dogville, uma ideia a respeito do que não se quer ver, ainda que à disposição do olhar. Em cima dessa estratégia de observar a dinâmica de um grupo de pessoas à margem da própria frieza, Zona de Interesse emerge para mostrar outra forma de superioridade, aquela que molda um universo a partir da passividade de quem o adentra. 

Com parcimônia insuspeita, nada na narrativa pensada por Martin Amis cuja adaptação é também comandada por Glazer, nos é oferecido rapidamente. Tudo é parte integrante de um conjunto de eventos que se desenrola de maneira explícita ao espectador, mas que não exige uma medição. Porque estamos diante de um espetáculo de sobreposição de camada após camada, que se alimenta a partir da vigilância externa – a nossa, e a deles por igual. Tudo é um jogo, onde testemunhas são preparadas para o incômodo de participar de algo que não temos controle sobre a mudança, apenas a (ausência de) escolha de continuar seguindo por entre aquelas situações. No palco, o diretor nos oferece uma especialidade rara através da montagem comandada por Paul Watts: nenhum detalhe é perdido na troca de planos, a orquestração para a troca de planos é tão precisa que nos indagamos se estamos ou não diante de cortes. Esse é um dos inúmeros pontos de brilho de um trabalho inigualável por inteiro. 

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Ainda que o Cinema seja uma arte não-interativa, o segmento onde Glazer nos coloca dentro de Zona de Interesse é o do material de estudo, quase como um uma redoma de hamsters. Como o neonazismo é uma realidade do nosso tempo e a extrema direita retoma posicionamentos análogos às essas práticas chocantes, o que está em foco, na verdade, é quase um jogo onde de reflexo; nós os vemos, e vice-versa. Para isso, parte da entrada do cenário, uma parede de vidro que não esconde a entrada da casa, é performática do todo – nada é coberto ao espectador, tudo é devassado e será visto, por mais que guarde uma normalidade hedionda. Todas as ações são comuns, tudo é cotidiano e banal… a chegada de nova remessa de roupas “doadas”, um batom experimentado, o jardim florido que não esconde a produção de uma fumaça atrás. São generalizações mundanas, ressignificadas a partir de uma ótica grotesca que não precisa de comentário posterior; as coisas são simplesmente assim, e continuam sendo ainda hoje. 

Não falta detalhe para transformar Zona de Interesse em material de impacto emocional, mas que também reverbere dentro de sua lógica interna, e isso transforme a experiência cinematográfica para muito além de “um filme já feito sobre um tema já feito”. Tem a ver com cada elemento colocado em tela, porque nada é casual; existe um apego tanto à criação do plano, quanto ao constitui esse mesmo plano. Se os cavalos estraçalham as maçãs de um pomar insuspeito, é porque tais ações têm em seu simbolismo um elemento que acrescenta sabor ao que se vê. Assim como o trabalho de som poucas vezes foi mais efetivo que aqui; não é um caso de organizar o caos dentro de um universo sonoro, mas de enfatizar também a força do silêncio e do detalhe na escultura de seu universo particular. 

Está no inumano, mas também o que é humano passou por um processo de transformação e o que vemos são corpos preparados para a performance. Sandra Hüller (na Maior Temporada de uma Carreira) e Christian Friedel são os alvos fáceis porque estão no centro da ação, e é deles que emana um lapso de construção social. São corpos à serviço de uma ciência inexata: a reprodução de um estado doentio de coisas, que transparece no seu corpo. Exemplo: através da postura, do andar, mesmo no gestual composto por Hüller, um manancial de informações nos chega a respeito do status quo representado ali. É o vestígio de uma corcunda, é um deslumbre da futilidade, é uma corrida na tentativa de salvar o pouco que se alcançou, e não podemos retroceder, não é mesmo? Para isso, uma mimetização de afeto é encanada na frente de um rio; a natureza não consegue refletir o que não é real. 

O trabalho de Lukasz Zał, indicado ao Oscar por Ida e Guerra Fria, é minucioso pela maneira como elabora em conjunto a Glazer a radiografia em torno daqueles personagens, e o que acaba por revelar é tão sintomático da narrativa que seu labor se torna indissociável do que Zona de Interesse revela a respeito de um tempo e de uma parcela de sensações. Ao responder às luzes projetadas sobre cada sombra de indivíduo com uma contradição imagética, a claridade com que o filme joga em cena e o trilho com o qual corre por sobre o cenário demonstram o avanço das políticas (des)humanas em torno de uma questão universal. Que o filme seja progressivamente tragado pelo acinzentado, para terminar em um eterno subterrâneo onde o breu aguarda o protagonista, demonstra a clara providência do artista sobre uma obra superlativa, que nenhum amontoado de linhas conseguirá traduzir ou transpor. É o tempo dentro daquela câmara pré-tortura que nos condena a tal experiência onde se chocam o fascínio exuberante e o torpor pela bestialidade do coletivo. 

Um grande momento

O casaco de pele / o batom / a despedida no lago

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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