Crítica | Catálogo

A Estrela Cadente

Abrindo a percepção

( L'étoile filante, BEL, FRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Comédia, Policial
  • Direção: Dominique Abel, Fiona Gordon
  • Roteiro: Dominique Abel, Fiona Gordon
  • Elenco: Dominique Abel, Fiona Gordon, Kaori Ito, Philipe Martz, Bruno Romy, Melanie Depuiset, Jimmy Assandri, Bertrand Landhauser
  • Duração: 95 minutos

O circuito cinematográfico brasileiro se permite a raras experimentações, dando pouca voz a filmes alternativos com chance de encontrar público no meio de suas estranhezas de linguagem. Eu tô falando de propostas reais para esse lado; um EO, vencedor de prêmio em Cannes e indicado ao Oscar, não conta pela estatura que o filme adquiriu. O mesmo poderia ser dito sobre autores de grife, como Aki Kaurismaki e Roy Andersson, cujas filmografias já chegam vendidas por si só. Semana que vem, o escalafobético Conto de Fadas finalmente chega aos cinemas, mas Dominique Abel e Fiona Gordon estão longe de ter uma assinatura reconhecível, como Aleksandr Sokurov. Por isso, a estreia de A Estrela Cadente é um acerto tão delicioso, porque de vez em quando o cinéfilo recebe não o filme que quer, mas o que ele nem sabia que precisava ver. 

Apesar de ter alguma semelhança com as pessoas citadas acima, A Estrela Cadente é tão vibrante justamente por ter uma visão muito própria acerca do cinema que quer emular. Pode ser um Jean-Pierre Jeunet, mas sem a intenção de popularidade do mesmo; pode ser um Bruno Dumont, mas sem o apreço pelo exotismo que o diretor francês carrega. Decerto que os códigos remetem a outros autores, mas o casal Abel e Gordon tem, nesse único filme assistido (Perdidos em Paris chegou por aqui, infelizmente não visto), uma capacidade de nos conectar ao que eles estão contando e limitar essa visão para o alheio a algo posterior. O que está em jogo na conjugação é se deixar levar pelo que é experimentado em cena, e que poderia se assemelhar a um labirinto dentro de um parque de diversões. 

Começa pela escolha pouco didática de narrar uma história, que só pode não ser entendida pelo espectador acostumado demais a não se deixar levar pela fabulação visual. O cinema é uma arte que nasceu para ter sua história contada pelo plano, com a ajuda se possível pouco intrusiva do roteiro. Com um olhar mais próximo da alegoria visual, seus diretores pedem que demos a eles a mesma liberdade que eles dão a A Estrela Cadente, sendo fixados a pontos de discussão que contemplem mais a dinâmica do movimento dos corpos e das associações simétricas da imagem. Existe sim uma história sendo contada ali, e ela inclusive é simples quase como se estivéssemos mesmo assistindo a algo do Primeiro Cinema, mas sua elaboração estética reconfigura nossas percepções. 

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Como dito acima, é um trabalho essencialmente corporal o que é realizado pelo diminuto elenco principal, e mesmo os outros três integrantes menos presentes. São eles que transformam a experiência assistindo A Estrela Cadente em um balé contemporâneo, e tão essencial por ser tão sui generis. São atores muito bem cadenciados por uma proposta de performance que vai além do que enxergamos como tradicional, mas que não prescinde do que entendemos como algo cartesiano de interpretação. Abel e Gordon, que também são os protagonistas inclusive, tem momentos cheios de grandeza dentro do que fazem, com ele indo a lugares muito especiais. No conjunto, temos um grupo de artistas livres do que se espera de um ator de cinema, porque compreendem que a arte não pode ser amarrada. 

A Estrela Cadente é uma sessão tão imersiva também porque é como assistir a muitas expressões artísticas ao mesmo tempo, por conta da multiplicidade do que é exposto ali. Nada com uma legenda sublinhando a experiência, apenas um campo aberto a tais oportunidades que não são cerceadas. Não estamos diante de um produto que procura a estranheza para se sobressair, mas de que sua armadura é suficiente para que o público que se propuser encarar novas encarnações, possa enfim se identificar com o Cinema que vê ali. Uma história provável (um ex-guerrilheiro descoberto por uma vítima do passado passa a ser perseguido, e acaba por conhecer um sósia ao mesmo tempo) que embala uma ideia de realização que não precisa encontrar obviedades, justamente por moldar um novo caminho para o que está sendo visto. 

Misturando ainda nessa seara o cinema noir, o universo dos mímicos e uma história de amor surpreendente, A Estrela Cadente não se parece com muita coisa que iremos ver ao longo do ano, inclusive com o que teremos pouca intimidade de encontro. Mas não é apenas por permitir que estejamos em contato com uma filmografia de articulação diferenciada os motivos pelo qual ele é tão recompensador, embora isso também entre na equação. O que absorve nossa atenção é o vigor alucinado que o filme carrega, que aposta no ponto de partida fácil, mas que seu desenvolvimento carrega tanto frescor que passa a ser difícil traçar um caminho para seus resultados.

Um grande momento
A dança no bar

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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