Crítica | Festival

Cannes 2022: “A vida é injusta”

Armageddon Time, de James Gray
(EUA, 2022)
Competição

EO, de Jerzy Skolimowski
(Polônia, 2022)
Competição

Un beau matin, de Mia Hansen-Løve
(França, 2022)
Quinzena dos Realizadores

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Tradicionalmente, o romance de formação é um dos modelos mais funcionais na transposição da forma literária da narrativa para o espaço do cinema, algo que certamente deve muito ao fato de que a capacidade da linguagem audiovisual de reproduzir a ideia de descoberta é um efeito bastante natural do “dar a ver” que o cinema traz para as artes. De fato, na grande tela, irmanar-se ao ponto de vista de um personagem é um efeito muito eficaz de conexão, o que faz com que esses contos de formação de um olhar (e de uma personalidade) frente ao mundo resultem muitas vezes em experiências fortes – o que certamente é o caso no novo filme de James Gray, Armageddon Time, que soma a esta característica mais geral o fato de ser um filme profundamente autobiográfico sobre as experiências do seu autor crescendo nos bairros mais distantes de Nova York, no começo dos anos 80.

Assim como em alguns filmes recentes, como Licorice Pizza ou Era Uma Vez em… Hollywood, esse sentimento de reconstituição de uma época que passa mais pela memória afetiva do que necessariamente somente pela correção histórica, é algo muito importante para Armageddon Time. Não é tanto que Gray queira que sintamos por duas horas que estamos em Nova York em 1980, mas sim que estamos na sua Nova York, passeando pelas veredas da sua memória. O efeito por trás disso é muito poderoso, e permite que a mistura de aspectos profundamente pessoais se misturem com algo da experiência de um grupo específico (a comunidade judia emigrante do Leste Europeu, na qual já se passavam alguns dos primeiros filmes do cineasta) mas também aspectos nacionais e mundiais importantes, que fazem referência a questões políticas e culturais decisivas, que Gray certamente nos indica compreender em suas consequências até a atualidade (e, nesse ponto, a participação no filme da família Trump é essencial).

Armageddon Time
Focus Features Armageddon Time, de James Gray

No entanto, ainda que esse background todo seja parte importantíssima do que o filme deseja, especialmente nos seus aspectos sociais mais incisivos, como a persistência do racismo como uma marca fundamental dos EUA, não haveria como ele atingir metade de sua força sem a presença de um protagonista tão brilhante como o jovem ator Banks Repeta, numa das interpretações infantis mais impressionantes em muito tempo (cercado, deve ser dito, de uma série de outras atuações marcantes, de gente enorme como Anthony Hopkins e Anne Hathaway até descobertas mais recentes como Jeremy Strong). O que o jovem ator consegue com seu personagem é um prodígio: ao mesmo tempo em que Charlie é empático para nós em toda a duração do filme, ele nunca precisa ser um menino inocente e bondoso simplesmente. Repeta constrói, com grande inquietação e complexidade, um personagem simultaneamente ousado e temeroso, profundamente empático e eventualmente cruel, um menino inseguro descobrindo, para o bem e para o mal, os limites que esse mundo vai lhe impondo inexoravelmente. 

Sim, pois se há um tema de fundo para esse romance de formação é justamente essa ideia de desejo de expandir seus limites, e constantemente descobrir até onde a simples vontade individual será capaz ou não de fazê-lo. “O que está acontecendo com você é injusto, mas é importante você saber que a vida é injusta”, lhe diz seu pai mais adiante no filme. Crescer, segundo Gray, é necessariamente violento, e não porque as pessoas sejam sempre ruins, mas porque habitam um sistema onde não será sempre o bom sentimento que vai permitir a sobrevivência. Assim é que Gray constrói a sua família judia: ninguém é cruel por prazer, mas também não há idealizações: pais e mães passam de geração em geração os limites e as castrações que lhes foram impostas anteriormente, e cabe a cada nova “fornada” buscar redefinir suas possibilidades – ou ao menos testá-las ao máximo. Se a ideia de transmissão e herança é muita cara ao cinema de Gray, aqui sua exploração pode até parecer superficialmente mais leve por sua encarnação infantil, mas, na verdade, talvez nunca tenha sido tão profunda.

EO
Aneta Gebska/Filip Gebski EO, de Jerzy Skolimowski

Desafiar limites também é uma ideia cara ao cinema de Jerzy Skolimowski, que com EO certamente apresentará o trabalho mais idiossincrático da competição de Cannes em 2022. Seu título aparentemente enigmático nada mais é do que uma reprodução do som emitido pelos burros, animal que é o protagonista principal do filme. Se a inspiração no Balthazar de A Grande Testemunha, de Robert Bresson, é não apenas óbvia, como reconhecida (Skolimowski diz que aquele foi o único filme que o fez chorar na vida), a forma do filme do polonês é tudo menos bressoniana: a odisseia do seu animal protagonista é um verdadeiro mergulho bastante insano nas potências sensoriais do cinema, tanto em imagem quanto especialmente numa construção sonora acachapante. Não se trata exatamente de fazer com que experiencemos o mundo através do ponto de vista do animal equino (embora isso esteja mais presente em uma ou outra sequência), mas de fato que olhemos para a realidade por outros filtros, quase sempre entre o absurdo e o surpreendente. 

EO é um filme de choque e imersão, nisso trazendo à lembrança principalmente obras como o recente Siberia, de Abel Ferrara, ou, ainda que em outra chave, aspectos do cinema de Terence Malick (sem a narração em off). É um filme de grande liberdade formal e narrativa, mas acima de tudo de muita organicidade no seu abraço aos mais diferentes efeitos da linguagem audiovisual, algo que impressiona quando lembramos que estamos vendo uma obra tardia de um realizador octagenário (EO parece tudo, menos o trabalho de um realizador sem energia ou acomodado). Se há algumas sequências menos interessantes, que parecem reduzir aqui e ali a força do filme a uma certa mensagem ecologista mais banal, ou a aproximar o filme de um certo cinema da crueldade típico de uma moda mais recente do cinema de autor mundial, o que difere inegavelmente Skolimowski desses cineastas (os Ostlund, Lantimos, Larraín, Noé, etc) é que seu olhar para o mundo e seu uso das ferramentas do cinema escapa constantemente dos maniqueísmos ou dos reducionismos mais fáceis. Para cada momento mais óbvio de simbolismo há quatro ou cinco de um simples “what the fuck”, um sentimento de descoberta e surpresa que nenhum desses cineastas citados têm a capacidade de suscitar.

Mas não são apenas crianças e animais que podem descobrir a injustiça inerente do mundo nas narrativas cinematográficas. No novo filme de Mia Hansen-Løve, a protagonista de trinta e poucos anos interpretada por Léa Seydoux também está passando por um momento da vida em que o banal parece ganhar uma dimensão épica, quase pra além de seus desejos ou expectativas. Isso acontece principalmente pelo fato de que seu pai está enfrentando uma doença neurológica degenerativa incurável, o que demanda de todos à sua volta não apenas muita energia e cuidados constantes, como a necessidade de adaptar a vida dia a dia à nova realidade. Somando-se a isso, cabe a Sandra, a protagonista, equilibrar da maneira possível a necessidade de criar sozinha sua filha pequena de sete anos (pois é viúva jovem) enquanto busca seguir com sua carreira de tradutora simultânea – e, como se isso fosse pouco, reviver sua vida amorosa aos poucos com um velho amigo (uma redescoberta maravilhosa, se não fosse a inconveniência dele ser casado).

Un Bon Matin
Les Films Pelleas Un beau matin, de Mia Hansen-Løve

Como se pode ver nessa breve descrição, a grande aposta de Hansen-Løve é de ser capaz de fazer com que convivam, numa enxuta duração de pouco mais de noventa minutos, esses vários possíveis filmes isolados, cada um deles um universo em si: a doença terminal, a criação solitária de uma criança, o romance proibido. De fato, a maneira como a diretora e roteirista consegue fazer com que cada um desses “micro-núcleos” se desenvolva plenamente em termos de drama e de resolução é mesmo a maior força do filme, produto claro de uma enorme maturidade e domínio que desenvolveu na escrita e na combinação mise-en-scène e montagem. Un beau matin se move com enorme rapidez, sem perder a profundidade, como se espelhando um sentimento de Sandra de que sua vida a está atropelando: descobre simultaneamente a inexorabilidade da finitude com seu pai, a incompletude com seu namorado e o amadurecimento com sua filha, tudo ao mesmo tempo. 

Pois, então, a pergunta ao final parece ser: em meio a tudo isso, o que sobra dela – ou, mais essencialmente, para ela? Talvez seja apenas fruto da coincidência da sequência dos filmes no programa do festival (algo sempre determinante a como experienciamos os filmes nesses eventos), mas ressoa de novo a voz do pai de Charlie, em Armageddon Time: “a vida não é justa”. Mas ainda assim, criança, animal equestre ou jovem mulher, é possível vive-la, sem deixar de se rebelar contra essa injustiça inerente sempre que possível. E, ao menos através da linguagem do cinema, até conseguirmos eventualmente superar essa injustiça e tocar na beleza disso tudo, mesmo que fugidiamente. 

[75º Festival de Cannes]

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Eduardo Valente

Eduardo Valente é cineasta, crítico e programador de cinema, trabalhando desde 2016 como delegado do Festival de Berlim no Brasil. Ele também é membro do comitê de seleção do Olhar de Cinema, festival que acontece em Curitiba. Dirigiu três curtas e um longa metragem, todos exibidos no Festival de Cannes; trabalhou como assessor internacional na ANCINE; e foi editor de duas revistas online de crítica de cinema, Contracampo e Cinética.
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