Crítica | Festival

A Voz de Deus

Infâncias usurpadas

(A Voz de Deus, BRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Miguel Antunes Ramos
  • Roteiro: Alice Riff, Miguel Antunes Ramos
  • Duração: 85 minutos

O Brasil viu recentemente a imagem do chamado missionário mirim Miguel Oliveira se espalhar pelas redes. Diante de grandes plateias e da câmera do celular, estava uma criança transformada em pregador carismático. É nesse mesmo terreno de fé e espetáculo que Miguel Antunes Ramos constrói A Voz de Deus, documentário que acompanha a rotina de crianças pastoras e escancara como a infância se relaciona com a expansão do neopentecostalismo no país.

Entre os personagens centrais está Daniel Pentecoste, acompanhado pelo diretor desde a infância. Sua trajetória mostra como a lógica do púlpito se impõe cedo, transformando uma criança em líder espiritual e também em símbolo político. Não por acaso, as tensões familiares atravessam sua formação, com o pai capturado pelo discurso político da igreja e Daniel que, ao crescer, começa a se colocar de outra forma. O documentário encontra nessa fricção um retrato vivo da maneira como religião e ideologia se confundem no Brasil contemporâneo.

João Vitor Oto, o segundo personagem, aparece como contraponto geracional. Influenciador digital, ele já nasceu inserido na lógica das redes e faz da fama conquistada com suas pregações um caminho para acumular likes, comentários, compartilhamentos e até algum lucro. Sua imagem circula com rapidez, transformando sermões em fragmentos virais. Essa realidade contrasta com a formação de Daniel, ligada a uma prática mais lenta e analógica. Embora a exploração esteja presente nas duas trajetórias, a comparação entre os dois mostra como a infância pode ser capturada não só pela religião, mas também por uma cultura de visibilidade e consumo imediato.

Há uma proximidade evidente entre o diretor e os personagens, construída pelo tempo e pela intimidade que ele estabelece sobretudo com Daniel. A câmera se insere no cotidiano de forma natural, registrando gestos pequenos, conversas e tensões familiares sem soar intrusiva. Essa relação de confiança dá ao filme uma força especial, pois revela fragilidades que dificilmente seriam expostas de outra maneira. E talvez esteja aí o maior mérito de Miguel Antunes Ramos: abordar um tema espinhoso, que envolve religião, política e infância, sem cair no julgamento fácil, deixando que as imagens falem por si e expondo toda a complexidade.

O modo como observa os rituais ou a performance das crianças nos púlpitos também recebe atenção. Para além das igrejas e templos lotados, em encontros de pastores infantis, o documentário busca o registro e talvez a compreensão de um universo que existe, mas não é tão conhecido. E revela um processo mais amplo, em que política e religião moldam desde cedo a subjetividade e a experiência infantil. Crescer sob esse peso significa viver uma infância permanentemente vigiada e convertida em espetáculo, onde cada gesto é carregado de expectativa e utilidade.

A Voz de Deus é menos sobre a fé em si e mais sobre como ela se transforma em instrumento de poder. O que ele entrega é um retrato de como a infância pode ser usurpada por interesses maiores, entre igrejas, famílias e partidos. E, nesse ponto, o documentário surge como denúncia, mostrando que o futuro dessas crianças é manipulado antes mesmo de elas poderem escolher quem querem ser.

Um grande momento
A pregação velada no dia da eleição

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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