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Uma Carta para Beatrice

Ontem e hoje

(Uma Carta para Beatrice , BRA, 2024)
Nota  

Uma jornalista italiana, Beatrice, entra em contato com Helena Solberg para informá-la que seu filme, A Entrevista, teria tido uma cópia encontrada nos armários de uma escola de lá. A estreia na direção de Solberg não é um título qualquer, mas um dos mais importantes filmes da História do nosso Cinema, figurando em todas as listas prezadas sobre o assunto. A partir do diálogo entre essas duas mulheres, e o fascínio que a redescoberta da própria filmografia produz em si, a diretora concebe então Uma Carta para Beatrice, um dos filmes de abertura do É Tudo Verdade 2024. O paralelo entre os dois filmes vai além do que a premissa apresenta, porque Solberg realiza um novo olhar, absolutamente condizente com 2024, ao que o clássico apresentou em 1966. 

O mais relevante feito aqui é essa motivação que o encontro dessas duas mulheres acende em uma de nossas maiores e mais importantes diretoras. Sua obra é ancorada em um olhar sobre o feminino, sobre como se estabeleceram as relações entre a autora e cada um dos temas que surgiram em sua obra ao longo do caminho. Essa reflexão é, em paralelo, o que sustenta Uma Carta para Beatrice como se fosse uma moldura para a obra. Ainda que tal pesquisa pessoal não desemboque necessariamente em um filme arriscado, em um esforço de realização, esse é um caso onde o que presenciamos, enquanto mentalização, é a espinha dorsal de uma obra cuja introspecção de sua personagem central seja um mote suficientemente poderoso. 

A redescoberta de A Entrevista e a força que é extraída daquelas imagens, e que afetou a personagem-título do novo filme, é o que serve como base do que entre como reflexão aqui. Indo além ao que o filme inicial expõe, Solberg se desprende do que poderia ser alguma obrigação, para servir como pêndulo de si mesma. Não existem julgamentos sobre uma ideia de passado, ou mesmo uma transposição do que esperar do futuro; Uma Carta para Beatrice serve exatamente como uma lanterna mágica, que revela o destino intelectual de cada caminho ali apresentado. Não é um exercício de saudosismo, e sim uma análise até bem fria sobre os eventos narrados em cada título, e o que a moveu enquanto artista para chegar até cada lugar. 

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O dispositivo não é dos mais inspirados mesmo. Narração em off, apresentação das obras e entrevistas (mais uma vez elas) onde cada personagem tenta revisionar o papel da mulher, e como o ser feminino é essencialmente um ato político. As malfadadas ‘cabeças falantes’ está de volta aqui, ainda que alguns pontos sejam debatidos longe dos espaços fechados. São distinções particulares para cada uma, em seus lugares de fala que se colocam não como mulheres, apenas, mas como porta-vozes de um tempo. São linhas de pensamento muito inspiradas, que mesmo não se atendo às personagens, acabam por revelar quem elas são, já que acabam por criar um relevo representativo. É como se Uma Carta para Beatrice entendesse seu estudo dialético para longe das imagens. 

Existe pelo menos um olhar enviesado dentro de Uma Carta para Beatrice que não parece pertencer a discurso algum. Guilherme Terreri é um ator transformista que tornou-se conhecido como sua versão drag, Rita Von Hunty, que vem fazendo alguns trabalho como ator, em filmes como Fervo. Tendo já a voz de mulheres trans já propagadas pelo filme, é no mínimo estranho que Terreri esteja em cena, e bem mais como Terreri do que como sua personagem.

Tratando-se de uma obra cinematográfica não-exclusivamente discursiva, e observando as obras de Solberg ao longo de sua carreira (e parece que foi pinçado exclusivamente o que era mais potente, incluindo cenas de Vida de Menina), Uma Carta para Beatrice acaba por empalidecer. Tudo que nele é mais urgente e vibrante em sua condução, estão nas imagens já previamente capturadas por sua obra pregressa. Isso serve para que possamos balizar toda a trajetória de sua autora, mas não para cumprir o que se espera de um registro novo. Ficam intactos os diálogos entre ela e sua amiga Helena Buarque de Hollanda, ambas na ânsia entre o ensinar e o aprender. Ainda que, aqui e ali, o discurso também soe ultrapassado, é o retrato do cruzamento de gerações que perpassa todo o filme, e o concede interesse verdadeiro. 


Um grande momento

Solberg descreve Meio-Dia

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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