Crítica | Streaming e VoD

Jungle Cruise

(Jungle Cruise, EUA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Aventura
  • Direção: Jaume Collet-Serra
  • Roteiro: Michael Green, Glenn Ficarra, John Requa, John Norville, Josh Goldstein
  • Elenco: Dwayne Johnson, Emily Blunt, Édgar Ramírez, Jack Whitehall, Jesse Plemons, Paul Giamatti, Veronica Falcón, Dani Rovira, Quim Gutierrez.
  • Duração: 127 minutos

Estreando nesta quinta nos cinemas e amanhã no premier access do Disney+, Jungle Cruise é mais uma empreitada do estúdio do Mickey Mouse de proporções gigantescas em estrutura e pretensões de se tornar a próxima marca longeva com a presença do carismático Dwayne “The Rock” Johnson e com Emily Blunt, a nova intérprete de Mary Poppins.

Surgido em 1955 como uma das primeiras atrações da Adventureland no parque temático na Disneylândia — assim como Piratas do Caribe que é uma franquia de sucesso do cinema e continuaria sendo se não fosse por Johnny Depp –, Jungle Cruise foi recentemente reformado e fechado por conter alusões racistas aos povos indígenas da Amazônia. A atração foi inspirada no clássico Uma Aventura na África, protagonizado por Katherine Hepburn e Humphrey Bogart, que John Huston realizara quatro anos antes.

Não tão divertido como os novos títulos da franquia Jumanji estrelados por Dwayne Johnson, ou com o charme absurdo de um dos filmes de Indiana Jones, Tudo Por Uma Esmeralda e Crocodilo Dundee, até como A Múmia, — para ficar só em títulos aventurescos de 30 anos para cá –, Jungle Cruise é produzido pela dupla Hiram Garcia e Danny Garcia, além do próprio ator e protagonista. Foi após a entrada de Dwayne Johnson no projeto que Blunt aceitou ingressar no elenco e que foi possível contar com a grife do diretor espanhol Jaume Collet-Serra (de A Órfã), que fez muito bem à transição para o blockbuster — ele inclusive dirigirá Johnson na adaptação de HQ “O Adão Negro”.

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Para superar a lógica dominante nesse tipo de filme de aventura, com uma composição recheada de efeitos especiais e estímulos visuais mas sustentada por roteiros que seguem uma cartilha pouco inventiva dentro desse subgênero, Collet-Serra vislumbra um cenário imagético que dá especial atenção aos filmes de Herzog feitos na Amazônia.

Jungle Cruise se passa no início do século 20, pouco antes do princípio da primeira guerra mundial (a parte que referencia Fitzcarraldo) mas também parte de sua história está constituída nos quatro séculos antes, quando um grupo de exploradores espanhóis subira o rio Amazonas em busca do Eldorado (a parte que, por sua vez, referencia Aguirre – Cólera dos Deuses). A costura entre passado e presente se dá por meio das descobertas da botânica metida a exploradora Lily Houghton (Emily Blunt) que, junto com o irmão McGregor (Jack Whithall), rouba um artefato da Sociedade Científica Britânica e vem até o norte do Brasil em busca de uma flor com incríveis poderes curativos. Eles vão, então, somar esforços com Jack (Johnson), um barqueiro boa pinta que vai levá-los até o local onde estaria a mítica Árvore da Vida, de onde a flor brota. No caminho, vão se deparar com tribos indígenas, uma onça, golfinhos encantados ou botos cor de rosa e amaldiçoados espanhóis como Lope de Aguirre (Edgar Ramirez).

Jungle Cruise
© Disney

Nos dois filmes, realizados no intervalo de dez anos na Amazônia peruana e no Brasil, Herzog quase enlouqueceu após meses de filmagens difíceis na floresta e em essência, ambos colocam homens para expiar seus pecados ao serem confrontados pelos seus limites em situações externas e conflituosas com a natureza — no caso, os personagens vividos pelo conflituoso Klaus Kinski. Óbvio que um filme da Disney, com censura livre, jamais teria complexificadas as motivações ou conflitos de seus personagens, mas Collet-Serra imprime um certo paralelismo entre Jungle Cruise e esses filmes, muito auxiliado pelos figurinos criados por Paço Delgado, os cenários e ambiência dos espaços orquestrada por Jean-Vincent Puzos e a fotografia de Flavio Martínez Labiano. O fotógrafo e o cineasta trabalharam com lentes fabricadas com exclusividade pela Panavision, com um tom sépia amarelado que cria a sensação rica e ensolarada que a Amazônia tinha no início do século XX durante o ciclo da borracha. Então, depois de décadas de subrepresentação em produções estrangeiras, Jungle Cruise traz uma Amazônia bem fidedigna, reflexo de uma pesquisa caprichosa e da preocupação dos produtores e do cineasta.

Mas, mesmo que visualmente exista ambivalência e coerência de fatos históricos, costumes e diálogos, nem tudo são flores. A Porto Velho (capital de Rondônia) que é representada se assemelha mais a um vilarejo mexicano ou a Bangladesh do que uma cidade ribeirinha. Se tivessem de fato filmado as cenas numa cidade da Amazônia e não na ilha havaiana de Kauia, onde a vila cenográfica foi construída; com a presença de atores brasileiros e inclusive nortistas, poderia ter resultado em maior fidelidade. Já o tanque da água com quase 2 milhões de litros cúbicos, encenando o Rio Amazonas, foi construído nos estúdios Black Hall em Atlanta. Mas retomando, a tentativa feita em Jungle Cruise de não exotizar tanto a ponto de perder a referência do que é próximo de uma versão fiel da região amazônica é válida, pois o filme traz uma visão que não é a deturpada de sempre — como se o território e, por consequência, o norte do Brasil fossem parte de um dos países vizinhos hispanofalantes e não um lugar com identidade própria. No filme, ouvimos espanhol antigo do século XVI, na voz de Aguirre e sua tropa; português; um pouco do italiano do personagem de Paul Giamatti, e até Omágua, que é uma língua do tronco Tupi-Guarani.

Em Jungle Cruise, o barão da borracha megalomaníaco Fitzcarraldo dá lugar ao príncipe alemão Joachim (Jesse Plemons, bom demais) que é tão alucinado que parece ter sido escrito pelo próprio Werner Herzog. Aguirre está lá, porém na versão de Collet-Serra não é a ambição desmedida que o faz aterrorizar e chacinar populações, mas sim a necessidade que ele tem de encontrar uma cura para a doença da única filha. E aí existe uma chave de compreensão um tanto óbvia que vai tornar o personagem de Dwayne Johnson vital para a resolução da trama.

Jungle Cruise
© Disney

O filme segue o curso dos sinuosos rios da Amazônia com o barco raquítico de atitude arrojada chamado La Quilla (ou Mama Killa, deusa inca representada pela Lua), de propriedade de Jack, que os leva até a fronteira com o Peru na nascente do Amazonas, onde está escondido um dos segredos mais bem guardados das civilizações ancestrais: Eldorado, a cidade sagrada. Mas isso não sem despistar o submarino alemão e o príncipe que quer por as mãos na Lágrimas da Lua (o nome da flor) para vencer as guerras e ter a soberania da Europa. Além de lidar com a ameaça dos exploradores espanhóis que estão incrustados nas profundezas da floresta — e cujas aparições são incríveis graças aos efeitos especiais. Blunt como Lily é maravilhosa no que se propõe, mesmo tendo pouco espaço de manobra para emprestar camadas à sua heroica mocinha — e todos os atores ali representam estereótipos sólidos.

Outro ponto que não torna a narrativa de época moderna, como intencionava o estúdio pensando em seu público diverso, é o tropo da donzela em perigo e do gay afeminado. Se Lily é autossuficiente, inteligentíssima e sabe se defender como ninguém, o papel de criatura indefesa, burguesa, pronta para ser resgatada cabe ao seu irmão McGregor, o que é uma pena, além de ser uma caracterização homofóbica. Entre queimaduras de sol, picadas de inseto e relatos sobre antigas lendas de povos indígenas techua — e a tribo representada é etnicamente muito semelhante às do alto Amazonas — a trama do filme se esvai e investe nas soluções fáceis, afinal o objetivo é divertir e engatar no próximo filme.

O roteiro é assinado por dez mãos, o que dá o indicativo de que o mesmo não foi construído na forma de tratamentos (drafts) de roteiro, mas sim que cada roteirista ou dupla de roteiristas ficou responsável por um ato ou segmento da história. A prática pode parecer estranha para roteiristas brasileiros mas é comum na indústria em se tratando de megaproduções. É possível ainda pensar que os núcleos dividiram entre si os personagens e foram trabalhando em separado as cenas onde estes tinham mais tempo destaque e a necessidade da constituição do arco para serem integrados ao núcleo dramático da história.

Muito da graça de Jungle Cruise não reside nas piadas de velho que o personagem de The Rock insistentemente faz — mesmo ele sendo uma montanha de carisma –, mas no tamanho do delírio visual e na concepção desse filme como uma aventura para ser vista e revista no streaming, já que os cinemas ainda seguem na reabertura cautelosa, emanando uma aura de Sessão Da Tarde, mas sem potencial para permanecer como um clássico.

Um grande momento
Os encantados botos

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Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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