(Two Lovers, EUA/FRA, 2008)
Amantes não abre necessariamente com uma boa cena, e com o desenrolar da narrativa, sua função perde qualquer justificativa. O longa de James Gray, um dos mais impressionantes da década passada, se esmera nas delicadezas de sua construção. Ao adentrar essa tessitura sutil de melancolia e sobrevivência, encontramos em Leonard (a um só tempo âncora e sobrevivente), uma presença fugidia. Quando tomamos conhecimento de uma cicatriz do passado recente desse protagonista (que provavelmente não quereria sê-lo), com a delicadeza habitual que a narrativa nos acostuma, o rasgo inicial imagético se mostra desnecessário – Leonard não precisa daquela impressão inicial expositiva. Ele irá revelar suas camadas gradativamente.
James Gray, um dos cineastas mais seguros da atualidade, abre um de seus mais bem sucedidos petardos com uma concessão gratuita que, a bem da verdade, se perde na memória do espectador dados os caminhos cuidadosos que a narrativa irá desenrolar e que nos suscita a observar esse encontro entre duas almas caídas em desgraça. Encontram-se para expor suas fragilidades mútuas, ao passo que o roteiro nunca nos deixa esquecer da centralidade de Leonard que, através de minúcias, expõe muito mais do que uma radiografia acerca da sobrevivência. Sem jamais sublinhar, Amantes observa o judaísmo da maneira mais ambígua possível.
Ao adentrarmos a colcha de sutilezas que é o conjunto de elementos que circundam Leonard e a atmosfera de sua família – ocupação e cenários que também compõem seu universo -, Gray propõe um jogo de captura de detalhes para que a trajetória seja contada sem esgarçar suas filigranas. Leonard está em praticamente todos os planos, sempre verbalizando o mínimo possível, mas comunicando com todo o resto. Sua presença sorrateira indica uma inadequação inequívoca em todos os ambientes. Leonard sabe que aquela casa não é sua casa, que aquele emprego não é seu emprego, que aquela vida não é sua vida – ainda assim, está sendo arrastado para um lado e para o outro, conformado.
Porque, mesmo inadequado, os olhos de Leonard gritam por salvação. Existe um homem que se expressa vibrante pela janela, que canta sobre si mesmo, que dança puxando holofotes para si… mas esse homem é um renascido por natureza. Rugidos ainda ecoam, mas o “leão” Leonard não só foi abatido como acredita precisar escolher entre o zoológico e a selva, sem perceber que sua opção não passa de uma cortina de fumaça para esconder uma vida de aceitação dentro de códigos silenciosos que jamais se fazem ouvir claramente. Porém, que estão nas entrelinhas invisíveis e não ditas, com a referida sutileza no que diz respeito tanto ao protagonista quanto ao seu destino.
Leonard não percebe, mas não é apenas Michelle que o usa; todos os personagens ao seu redor tem questões que o protagonista pode resolver, e não se furtam em fazê-lo. Dos seus pais aos pais de sua pretendente Sandra, passando pela própria Sandra e até o amante de Michelle, todos veem Leonard como um facilitador, e seguem usando-o mesmo que não intencionalmente. Já o seu próprio interesse consiste em chegar ao fim ileso, depois de tantos danos emocionais. Ao encontrar uma outra pessoa tão adoecida quanto ele, em meio a uma discussão onde ela está tão acuada quanto ele é na vida, se conecta imediatamente, sem perceber o quão machucados ambos estão e o quão mal um faz ao outro.
Gray filma toda essa orquestração da melancolia procurando o detalhe oculto em cada plano: é o rosto de Joaquin Phoenix por entre a porta de vidro que o deforma e prende, ou seus dedos em busca de um corrimão que o proteja, ou fugindo do plano a todo instante, saindo de cena, se escondendo da luz que incide sobre si. A câmera se obriga a respeitar a necessidade de ausência de um protagonista que precisa se livrar do julgamento sob o qual está constantemente exposto. Por esse motivo, foge… em busca de uma espécie de livramento do que o cerca. Nesse sentido, há uma semelhança imagética de Amantes a O Show de Truman de Peter Weir – protagonistas que queriam ser homens comuns, mas que a câmera busca por suas presenças para que a mesma os justifique.
E toda a criação fotográfica de Amantes é uma busca pelo corpo de Joaquin Phoenix, que responde a todas as questões emocionais que o filme apresenta com sua presença, puramente. Sua interação com objetos, cenários e outros atores é o relevo que expõe os propósitos de seu diretor, que o filma de maneira aparentemente displicente, mas que esconde nesse raio X toda a leitura de sua argamassa. Sua carreira é uma espécie de ‘volta ao mundo cinematográfico’, e aqui seu foco parece ter sido o melodrama urbano que John Cassavetes tão habilmente cunhou, ao contrapor a cidade e o indivíduo em crise emocional. Fazendo por Phoenix o que o marido de Gena Rowlands fez tantas vezes por ela mesma, por Peter Falk e por Ben Gazzarra: criador e criatura se amalgamam na ânsia de filmar a implosão de uma nova geração.
Um Grande Momento:
A câmera segue Leonard e Michelle no telhado.