Crítica | FestivalFestival do Rio

Amor Até as Cinzas

(Jiang hu er nv, CHN/FRA/JAP, 2018)
Drama
Direção: Jia Zhangke
Elenco: Zhao Tao, Liao Fan, Diao Yi’nan, Feng Xiaogang, Xu Zheng, Zhang Yibai
Roteiro: Jia Zhangke
Duração: 137 min.
Nota: 8 ★★★★★★★★☆☆

Como As Montanhas Se Separam (2015), belo filme anterior de Jia Zhangke, Amor Até as Cinzas é dividido em três segmentos, que transcorrem em temporalidades distintas (2001, 2006 e 2017-2018), e tem em seu centro os efeitos da passagem do tempo sobre os afetos de uma mulher (Zao Thao, esposa e frequente parceira profissional do diretor). A protagonista inicia sua jornada como amante de um bem quisto membro de uma gangue na cidade de Datong (pertencente à província de Shanxi, a mesma em que se localiza Fenyang, terra natal de Zhangke e frequente cenário de seus filmes). Ela passa por uma mudança drástica decorrente de um ato impulsivo (mas aparentemente inevitável) e termina tentando reconstruir antigas relações.

As transições temporais construídas por Zhangke são de uma elegância absurda: sem recorrer a qualquer letreiro com datas, o diretor anuncia o avanço cronológico através do encontro de duas cenas envolvendo os mesmos meios de transporte (barcos entre o primeiro e o segundo segmentos, trens entre este e o terceiro), que levam a narrativa a reencontrar Thao em momentos distintos de sua vida; além disso, faz dos telefones celulares um objeto de cena importante, já que seus layouts característicos ajudam a remeter o espectador a cada época representada em cena.

Apoie o Cenas

Ainda que esteja no primeiro ato a sequência mais impressionante, de um confronto entre criminosos no meio de uma rua de Datong, é o segundo que guarda o melhor de Amor Até as Cinzas. Ao acompanhar a decadência da protagonista e suas tentativas de se reerguer, Zhangke cria momentos tanto comoventes quanto divertidos. No último caso, as estratégias postas em prática por ela para sobreviver financeiramente após retornar à vida em sociedade – o golpe aplicado em homens endinheirados num restaurante luxuoso é bastante engraçado.

No primeiro, especialmente a cena em que a personagem reencontra o ex-namorado num quarto de hotel: sua busca por, sob uma luz néon verde proveniente do exterior do ambiente, reatar o relacionamento já terminado e reviver um passado sepultado, traz à mente a sequência chave de Um Corpo que Cai (1958), na qual Scottie (James Stewart) conclui o processo de reconstrução da amada (supostamente) morta numa “nova” mulher (ambas interpretadas por Kim Novak).

Essa referência ao clássico de Alfred Hitchcock reforça a condição de frustração dos personagens de Amor Até as Cinzas. Mas as dores e tristezas que eles carregam não geram um filme niilista, que olha para a vida com absoluta desolação. Zhangke é um cineasta essencialmente humanista, seu cinema é, antes de tudo, cúmplice dos personagens que o povoam. Há absoluta empatia com seus dramas, o diretor está sempre falando do que também o atinge, como filho de Fenyang, parte da sociedade chinesa, ser humano.

A abordagem frontal do filme para a efemeridade da existência, que contrapõe o tempo da natureza (avassalador) ao do homem (que tenta deixar marcas, intervém no meio através da tecnologia, mas permanece ínfimo diante da grandiosidade do vulcão adormecido na paisagem do filme), não atua no sentido de desprezar os sentimentos dos personagens. Como, novamente, em As Montanhas Se Separam, os dramas muito bem acabados de Amor Até as Cinzas nascem das buscas infrutíferas, trágicas pois profundamente humanas, de uma mulher por controlar essa longuíssima duração.

Um Grande Momento:
A briga na rua.

Links

IMDb

[Festival do Rio 2018]

Wallace Andrioli

Wallace Andrioli é crítico de cinema e historiador, apaixonado pelos filmes de Alfred Hitchcock, Billy Wilder, Clint Eastwood e Edward Yang.
Botão Voltar ao topo