Crítica | Festival

Annette

Manipulando ao som do ego

(Annette, FRA, BEL, ALE, EUA, JAP, MEX, SUI, 2021)
Nota  
  • Gênero: Musical
  • Direção: Leos Carax
  • Roteiro: Ron Mael, Russell Mael
  • Elenco: Adam Driver, Marion Cotillard, Simon Helberg, Devyn McDowell
  • Duração: 141 minutos

Um bailado iluminado pelas luzes da noite na cidade do pecado, ecos de risadas, gozos, triunfo, amor, raiva, dor, união, abusos, morte e vida numa espiral musicada e imaginada por um dos cineastas mais genuínos que permanecem em atividade. Esse é Annette, o filme-ópera de Leos Carax.

Um capítulo sobre a capacidade autodestrutiva da fama em contraposição ao ego inflado de um homem manipulador. Parece familiar? Em se tratando da obra do cineasta, crítico e pensador do cinema francês, realmente é. Annette pode ser lido como o filme-espetáculo que é de forma individual, mas ainda como a segunda parte de um estudo sobre essa era (que tem um quê de ridícula) de espetacularização, holofotes e tragédias familiares. E é trágico também em sua arquitetura narrativa já que talhado como uma ópera, constituído em blocos dramáticos musicados – pois sim, também é um filme musical.

E aqui abrindo um parênteses para explicitar que é importante ter esse entendimento antes de formar uma opinião sobre a experiência Annette – que pode ser vivida na Mostra de SP. A escolha de amar ou odiar o filme está aberta, mas é interessante pensar de que forma a obra está sendo encarada já que está diametralmente oposta as convenções. E já que se trata de uma ópera, com solo, coro, recitativo, balé e as encenações, a música é parte fundamental na estruturação narrativa de Annette. Ela está a cargo da dupla de protopunk Sparks, formada por Russel e Ron Mael.

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“Tenham paciência”

Puxando como um maestro o elenco/coro, Annette avança o içar das cortinas com “So May We Start” na Abertura, intermezzo com “True Love Finds a Way”, que funciona como uma cena de apresentação metalinguística para a história de amor moldada no showbiz, que será cantada e cinematograficamente encenada a partir de então. E Carax inclusive nos pede que desliguemos os celulares, foquemos atenção e tenhamos alguma paciência – então não foi por falta de aviso.

Annette
Foto: Divulgação

Cidade dos Sonhos

Entre rodopios, beijos, floreios e arfares após contemplativos momentos de intimidade, os amantes Ann (Marion Cotillard) – a estrela da opera – e Henry McHenry (Adam Driver) – o palhaço – decolam na moto para se refugiar numa mansão cinematográfica na Cidade dos Anjos, onde, meses depois, nasce Annette. Uma bebê-marionete. A criança, ao luar, canta como um ser celestial. Herda o dom da mãe e torna o pai ávido por sucesso fácil e exploratório. Sair de Paris e escolher a capital de Hollywood foi sagaz. Além da escolha do lugar, o noticiário de fofoca que volta e meia intervém dá um tom tragicômico e soturno, muito próximo a o que Lynch fez em Twin Peaks ou Mulholland Drive, que cai bem em Annette.

Aqui, falando das terminações nervosas e entremeios de uma ópera já está cabível a observação de que a metragem e o próprio ritmo, edição de Annette poderiam ter sido trabalhados de maneira diferente do resultado final. Se alongando sem haver justificativa razoável, o filme tem cinco árias, destas, três cantadas por Driver – que se sai genuinamente bem apesar de não ser um cantor – e duas por Cotillard, ganhadora de um Oscar por Piaf; cinco coros e dentre o que se pode visualizar como uma estrutura similar a de La Bohème de Puccini, por exemplo, em quatro atos dramáticos. Boa parte do recitativo, os diálogos, está nos primeiros dois atos, com a apresentação da história, o aprofundamento do amor de Henry e Ann e o nascimento de Annette; no terceiro ato, a crise, a perda e a resolução. Assim como na ópera de Puccini, um movimento elíptico leva ao princípio. Em Annette o elo de ligação é a lembrança de Henry iluminado pelo lua, antes de reencontrar a filha.

Falando sobre Driver, lindo e icônico ter o ator no auge da sua beleza mal compreendida, cantar as dores de ser desejado em substituição ao malabarismo que o sempre polivalente Denis Lavant fazia ao encarar os tipos mais distintos desde Boy Meets Girl.

Simon Helberg (Da série Big Bang Theory) está realmente ótimo como o maestro apaixonado por Ann e protetor de Annette. Parte o coração acompanhar o arco de seu personagem do início ao fim, servindo como uma luva para narrar a composição de “We Love Each Other So Much” – que possivelmente será indicada a Melhor Canção no próximo Oscar, assim esperemos -, que marca as transições entre os atos de Annette.

A paleta de cores, do verde musgo – no paletó de mendigo de Monsieur Oscar, aqui marcadamente no roupão de apresentação de Henry, por exemplo -, ao vermelho rubro escarlate, o âmbar, está belamente marcada na luz, cenografia e cenários (Carax sempre fez questão de gastar pequenas fortunas para construir seus sets), objetos e todo o design de cena, fazendo um balé harmonioso na edição quando traça paralelos entre o auge de McHenry e seu declínio.

Annette
Foto: Divulgação

“Nunca olhe para o abismo”

As metáforas visuais são tão poderosas em Annette – e também em Holy Motors, para ficar apenas no paralelismo com outra obra desse século da filmografia de Carax – quanto seus significados filosóficos e arquetípicos. A escolha pela bebê de madeira, como um Pinóquio, marionete manipulável, parece tão acertada quanto delicada pensando nas crianças alçadas ao estrelado sem pedirem por isso, e como boa parte delas não conseguem transmutar em adultos saudáveis. Falando dos pais, do casal central, Henry é o homem neandertal, representado na chave do arquétipo do bobo da corte, já que ele atua como um comediante stand up hedonista, que pratica uma espécie de humor viperino e tem apresentações esgotadas do espetáculo “Símio de Deus”. Além do título em si, ele coleciona itens de macacos, gorilas, e emula comportamentos característicos de nossos antepassados como o ato de comer bananas (?), além de manifestar um aspecto de sombra; aquela materialização de aspectos nefastos da personalidade que ele busca esconder sendo, digamos, um charmoso sociopata que não consegue repelir os impulsos vorazes: “olho para dentro do abismo e apenas existe o vazio. Ele me engole.”

Em contraponto, Ann, a cara metade, é retratada como a donzela, a mezzo soprano de aspecto etéreo, quase de outro mundo. Em cena, está portando ou se alimentando de uma maçã vermelha e o fruto guarda uma simbologia que compreende bem mais que Adão e Eva e o pecado original. A maçã na iconografia da mãe de Annette representa as dores do parto, o livre arbítrio, a magia e a própria imortalidade. De Ínsula Pomorum às Nereidas, Ann se torna uma ninfa do mar que promete vingança cada vez que Annette cantar após ser envenenada pelo amor de Henry- e aqui Carax faz uma referência também a Senta, heroína da ópera Navio Fantasma que se atira ao mar em sacrifício.

Muito ciente das ervas daninhas em sua vida pessoal e privada, dos triunfos e fracassos, das tragédias infindáveis como a morte da eterna Pola X e ex-esposa, Yekaterina Golubeva, Carax, que já havia colocado a única filha no prólogo de seu filme anterior como a inocente criança que assiste a degradação dos jogos perpetrados pela riqueza, dedica esse musical à Nastya.

Um grande momento
“Daddy? Daddy kill people”

[45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

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Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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