Crítica | CinemaDestaque

Armadilha

A pressão do olhar

(Trap , EUA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Suspense
  • Direção: M. Night Shayamalan
  • Roteiro: M. Night Shyamalan
  • Elenco: Josh Hartnett, Saleka Night Shyamalan, Ariel Donoghue, Alison Pill, Hayley Mills, Jonathan Langdon, Mark Bacolcol, Marnie McPhail, Russ, Kid Cudi
  • Duração: 100 minutos

Quando o fã não quer diminuir um trabalho “menor” do seu ídolo, a justificativa não sai muito longe disso: “fulano só estava se divertindo, e tá tudo bem”. De fato não há mesmo nenhum problema em um músico, ator, diretor, dançarino ou qualquer outro artista não precisar provar mais nada a ninguém realizando algo com um viés “importante”. Os fãs de M. Night Shyamalan (acredite, não são poucos) que insistirem nessa narrativa especificamente para Armadilha estarão tentando contornar um belo filme que não precisa de paternalismo. Superior a sua última obra, Batem à Porta, o novo filme do diretor é mais uma entrada não apenas para uma filmografia que insiste na excelência, como também talvez seja um olhar definitivo para a cinefilia de seu autor. 

O rigor de seu cinema não aparece tão explícito logo de cara, mas exatamente quando o que estão chamando de “o plot twist de sempre do Shyamalan” se revela, que a sofisticação ganha espaço; ou seja, em no máximo 15 minutos. Logo, o que estão chamando de plot, na verdade, chama sinopse e está apresentando uma obra onde o diretor está mais dedicado a uma exclusividade da mise-en-scene que nunca. Quando entende que o caminho está pavimentado, Shyamalan parte em busca de seu olhar menos óbvio em torno de uma narrativa que pode sim ser vista como simples, mas o diretor que ele é consegue exatamente arranjar suas fórmulas de uma maneira pouco trivial. Ou seja, Armadilha é sim um atestado de diversão de um diretor tão cheio de coisa para falar, mas nunca é somente isso. 

Pela primeira vez à sua disposição, Shyamalan tem Sayombhu Mukdeeprom (de Me Chame pelo Seu Nome e Memória) no comando da fotografia. A partir deste encontro, temos uma exploração do espaço-campo sob o jugo de um observador. Armadilha se move a partir do campo visual que Cooper, o protagonista, propõe; ele é o elemento que explora as possibilidades cênicas da obra, que o diretor não cessa de percorrer. Isso aproxima bastante o filme de uma lógica cara a um gênio como Alfred Hitchcock, principalmente em uma obra como Ladrão de Casaca, que não deixa de explorar um tema semelhante – um jogo de gato e rato, escancarado pelo ponto de vista de quem é a caça. A lembrança do clássico de 1960 é um dos muitos momentos onde o mestre brincou nessa vertente, mas tantos outras obras são contempladas nesse esquema de ousadia e sarcasmo de um tipo, que de tanto se achar invencível, acaba se colocando no encontro do que não consegue fugir – os próprios fantasmas. 

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Esse jogo se desenrola através do trabalho de Shyamalan, principalmente, e seria fácil alegar que isso seria o natural. O que quero dizer é que não há ação frenética, ao mesmo tempo em que estamos diante de uma obra inquieta, que nunca está inerte; os personagens sim, por muito tempo se situam em estado físico de repouso, ao contrário do que a imagem revela. Essa velocidade é cooptada estritamente pelo controle da imagem, pela maneira como cada respiração da montagem é calculada e compreendida. Trata-se de um trabalho coletivo, onde os tons de vermelho que constantemente são elaborados por Mukdeeprom para os closes em Josh Hartnett, conversem como o nervosismo gerado pelo ritmo que é imposto pela condução. O ator, redescoberto por mais um golpe de sensibilidade do autor, nunca esteve tão bem, e não apenas ressuscita sua carreira como mostra-se capaz do que ninguém anteriormente tinha confiado a ele. 

O que Shyamalan parece induzir, na verdade, é como o poder da imagem não está atrelado somente ao que o audiovisual produz, mas é uma tentativa de devolver poder ao material que nossa retina registra. Nesse sentido, além de emular Hitchcock e o Brian DePalma de Olhos de Serpente (e talvez mais o Peter Hyams de Morte Súbita), talvez não possamos esquecer do que nos ensinou o David Cronenberg de Videodrome: A Síndrome do Vídeo. Nunca estivemos tão dependentes da imagem gravada em todos os sentidos, e o filme é impregnado dessa dependência do hoje, que vai desde o primeiro plano do show, onde o mar de celulares se abre esplendoroso à frente de Cooper, mas também da informação que recebemos sobre a identidade do Açougueiro, que pode literalmente ser qualquer um porque em cada câmera de segurança foi flagrado um fenótipo diverso (Fragmentado, é você?). Ao mesmo tempo, Armadilha nos deixa refém do ato de olhar, do caráter decisivo que é ter a certeza de ver algo. Está em todos os personagens, desde a vigilância do protagonista na arena, passando pelos oficiais que o buscam, indo até a estrela presa em um banheiro enquanto assiste a uma imagem que pode ser definitiva – e fatal. Mesmo o real plot twist do filme é definido pela percepção que o olhar nos devolve, deixando claro que existe uma diferença entre a imagem gravada – e que nos dias de hoje, pode ser alterada de muitas formas – e o que testemunhamos, reavendo à presença física sua importância. 

Dividido em alguns atos onde o primeiro é o maior e mais tenso, Armadilha nos prega peças como o mais clássico exemplar do thriller ao imaginar que nada é o que parece, mesmo quando estamos olhando massivamente. Nesse sentido, as camadas de um personagem em constante reinvenção (na proteção vídeo ou na liberdade do real) impedem uma possível crítica ao que é apresentado de rocambolesco no clímax mutante. Porque se trata, sempre, de uma reinvenção para o olho, se acostumar uma vez mais a algo inesperado, e inteligível. É lógico que seu diretor quer também proporcionar entretenimento, mas restringi-lo a uma movimentação de mercado, é diminuir suas capacidades de pavimentação estética. Suas contínuas reinvenções mostram, dentro do que propõe a análise, que mesmo valorizando o olhar testemunhal, mesmo a esse artifício temos que criar desconfiança, porque mesmo o que vemos pode sempre estar em vias de se revelar um truque – da imagem em si ou do ponto de vista. 

É interessante como Shyamalan, além de tudo o que realiza como diretor em Armadilha, ainda se coloca pela primeira vez no lugar familiar que sempre foram a base de sua filmografia. Um cineasta, como sua inspiração, Steven Spielberg, que sempre almejou falar sobre os laços sanguíneos e o que se quebra a partir de alguma ruptura pela qual passe essa constituição. Sua filha está em cena como atriz, ou seja, de muitas formas o que vemos transcrito em cena também é um reflexo invertido de sua realização como diretor, dentro de casa. Mais uma vez, uma família prestes a se desestruturar ocupa um dos pilares de base de um filme de Shyamalan, mas pela primeira vez ele desempenha sua função extra-fílmica dentro do plano também. Dessa forma, cria um novo campo de análise na obra, cuja potência discursiva parece inesgotável; dentro do que estão expostos, ser um bom pai é o bastante para redimir alguém de tudo?

Um grande momento
O rosto de Cooper pela metade no plano

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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