- Gênero: Drama
- Direção: James Gray
- Roteiro: James Gray
- Elenco: Banks Repeta, Anne Hathaway, Jeremy Strong, Anthony Hopkins, Jaylin Webb, Andrew Polk, Tovah Feldshuh, Ryan Sell, Marcia Haufrecht, Teddy Coluca, Jessica Chastain
- Duração: 115 minutos
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A culpa pelo que acontece na sociedade é ou não é dos indivíduos em particular? O que podemos fazer para mudar o quadro geral de horror que nos assola, esbarra e, ainda que de maneira menos direta, sim, nos prejudica? É sobre essa estagnação que ajudou a matar Rodney King um dia e outro dia George Floyd, que trata Armageddon Time, novo filme de James Gray, que adentra mais uma vez suas memórias familiares – aqui, de maneira frontal – para tematizar de maneira enfática o racismo da América, a mais profunda e a mais superficial. Ainda que sua história e a de seus entes esteja na linha de frente, o cineasta nem tenta esconder (pra minha surpresa) sobre o que lhe interessa falar. Não à toa, até há espaço para a família Trump em cena, e sua visão separatista do mundo; colocá-los em cena é uma sinalização de posicionamento.
Gray corre diversos riscos nessa visão, pois, entre outras coisas, branco, hetero e burguês. Ele é um alvo de fácil ataque, que não precisa de qualquer advogado de defesa (seus privilégios já o são), e ainda sustenta sua tese com argumentos de duplo entendimento. Isso arroja seu roteiro, porque enxerga múltiplas visões à sua narrativa, mas também impele o espectador a ter uma visão ainda mais subjetiva sobre seu conto moral. Afinal, quais seriam os limites para debater o racismo estrutural, e qual o direito de voz a esse tema para um homem como ele? Armageddon Time não brinca com fogo, porque sua atmosfera é deveras agridoce para permitir qualquer leveza e/ou piada. O filme compreende a seriedade do que está tratando, e trata de tais questões sem superficialidade; o preço a ser pago é o mesmo a quem acende velas para o divino e o profano ao mesmo tempo.
Paul Graff é o protagonista, um mini-Gray talvez (ou com certeza), que observa o mundo por seus olhinhos claros, oriundo de uma bolha essa sim que ruge racismo – embora, com toda certeza, não o seja… “tenho até amigos negros”. Ainda que sua culpa seja verdadeira e seu sentimento de culpa seja honesto, ele existe e continua por aí, séculos antes de seu nascimento, 40 anos depois do mesmo. O que não tem como, é fingir que esse sujeito não existe, principalmente porque ele tem consciência do lugar privilegiado onde está. Ele fará algo para mudar o status quo? Sim. Esse algo tem como finalidade atrapalhar o seu próprio? Ali, onde o filme o flagra, não. Ele não tem força nem incentivo para tal; a vida ao seu redor trata de silenciar quem o faz, e produz os tais futuros ‘white saviors’ espalhados pelo mundo.
Vejam só, você querer salvar o mundo é uma atitude completamente repleta de positividade moral. Mas o que levou alguém a se posicionar como porta voz de quem já tem voz? Armageddon Time vive em uma linha tênue e arriscada, entre denunciar quem se é, e continuar sendo o que não se consegue deixar de ser. A covardia é uma marca de personalidade que deveria ser exterminada, e o protagonista do filme provavelmente tem também essa consciência. Por muitas vezes, o covarde terá grandes atitudes e conseguirá romper o sistema de castas que rege as relações sociais e a culpabilização que o sistema impõe. O filme flagra este cidadão em formação, com inúmeras demandas de construção de caráter sendo arremessadas em sua direção. O que importa, no fim das contas, é o que fazemos com o que nos é ensinado; são os primeiros passos em uma direção que sempre irá nos cobrar postura.
O que Gray faz em Armageddon Time é um ‘mea culpa’ declarado, que não vende valores nefastos como aceitáveis, nem enquanto padrão de inocência. Nada do que é visto em cena é descrito como plenamente satisfatório ou retumba positividade. Sim, é pouco não apoiar o crime, é preciso ser frontalmente contra o mesmo. Quando digo sobre assumir um risco, falo justamente sobre colocar uma criança para protagonizar essa história, repetir o padrão “o mundo visto pelos olhos de uma criança”, e com isso liberar a narrativa para ser assolada de informações que se degladiam. Quando escolhe não aprofundar nenhum outro personagem porque nenhum outro é Paul, ou seja, o centro nervoso da narrativa, ele sabe que está decidindo deixar Johnny como periférico; logo Johnny, o centro da discussão, que nunca está fora do quadro de debate, mesmo quando está fora do quadro fílmico.
Apesar da brilhante atuação de Banks Repeta, é Anthony Hopkins o brilho maior de Armageddon Time. E não estou citando-os apenas por uma vazia constatação analítica pobre, mas porque são esses dois personagens que travam um embate entre o que é certo e a necessidade primária de educação – e não, não estou falando de educação escolar. Paul, além de tudo, é uma criatura desajustada, que é protegido socialmente por ser branco e bem nascido – o filme molda isso em uma cena-chave, onde ele e Johnny se ferraram mais uma vez, porém o tratamento social a eles é diferenciado. Repeta traduz uma zona de ausência de compreensão que o filme cola em sua personalidade tendo a compreensão de que a mudança é longa para quem se estruturou nos benefícios – e às vezes, essa mudança nem vem.
No corpo de Hopkins, no entanto, vem de cara a lembrança de Vanessa Redgrave em Fuga para Odessa, James Caan em Caminho sem Volta e Joaquin Phoenix em Amantes. Essas três inserções anteriores de Gray na família mais profunda, no que ela tem de melhor e pior, no abismo para onde esses laços podem nos levar, está corporificado em Hokpkins. É uma naturalização muito enraizada, quase documental, sobre o que esse homem tenta honrar, em cena. Não é sobre interpretação apenas, mas sobre existir – enquanto ator e enquanto mantenedor de narrativas. Esses atores se embrenharam em compreender e traduzir em gestos e palavras, o que seu autor tenta verbalizar. Aqui em Armageddon Time, esse corpo está lutando para transmitir que a curva do caminho está chegando, e é melhor Paul ficar atento para os ventos da mudança. Eles virão, ainda bem.
Um grande momento
Na praça com o avô