- Gênero: Documentário
- Direção: João Dumans
- Roteiro: João Dumans, Viviane de Cassia Ferreira
- Elenco: Viviane de Cassia Ferreira, Douglas Klinger, Leandro Acácio, Wallison Antônio Pereira, Kelly Di Nathaly
- Duração: 80 minutos
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João Dumans está apenas na sua segunda direção em longas, embora sua estreia ao lado de Affonso Uchoa seja justamente um dos melhores filmes da década passada (Arábia). E já tendo colaborado em inúmeros grandes filmes do nosso cinema (A Vizinhança do Tigre e A Cidade Onde Envelheço, entre eles), já podemos considerá-lo como um jovem veterano. As Linhas da Minha Mão, seu novo filme em estreia na Mostra Tiradentes, é concebido com o mesmo grau de doçura e empatia que caracteriza seu lugar em tantos filmes essenciais, e isso acaba unindo essa nova produção a sua obra. Apesar do flerte com o trágico, o que se sobressai é essa visão cuidadosa para com a marginalidade que está na sua obra, de alguma forma.
Dumans, em todas essas produções citadas, conversa com uma ideia do ‘outsider’, aquele personagem desgarrado de suas origens ou de qualquer outro grupo. Viviane de Cassia Ferreira é uma artista e atriz performática que é o elemento central dessa narrativa tão sedutora quanto misteriosa. Dividido em sete atos, que seriam as entradas de Viviane e o aprofundamento de sua fala e personalidade, As Linhas da Minha Mão, como nas melhores produções, não te dá nenhum suporte gratuitamente. Todas as chaves de um possível teor especulativo são conseguidas a cada novo bloco apresentado, onde Viviane vai saindo caudalosamente de suas transcrições tradicionais para se aproximar de algo parecido com uma resposta ao espectador.
É o alcance do que propõe o filme, que entrega um jogo que é instigante do ponto de vista sociológico mas igualmente o é esteticamente falando. Somos enredados pela dialética de Viviane, e com sua capacidade gradativa de contar histórias da melhor maneira possível – com início, meio e fim, sabendo respeitar pausas dramáticas, ganchos e viradas finais. O mérito não é principalmente dela, mas de Dumans em perceber sua potencialidade, e junto a Luiz Pretti, aproveitar essa deixa sempre construída por Viviane para moldar o ritmo de sua narrativa. É uma equipe assombrosa em ‘timing’, que aproveita para criar os espaços de reflexão a um universo que nem toda parcela do público tem alcance para esse comum.
O dispositivo que Dumans está usando não é inédito, e nem foi inaugurado por ele ou por Gustavo Vinagre, que fez uma trilogia dessa mesma reprodução de investigação sobre um personagem (Lembro Mais dos Corvos como o mais famoso de sua série). O que o diretor mineiro reconfigura é uma linguagem sobre o cinema de contato direto, onde temos apenas como estudo a imagem e a palavra. De superclose em punho, As Linhas da Minha Mão valoriza a experiência simplificada. O ponto de sedução é inflacionado pelo que está em sua gênese; não há nada que separe espectador e personagem. A extensão entre tela e público se mostra ininterrupto, onde os gestos se misturam por intermédio dessa hiper exposição da imagem.
Entende-se que esse dispositivo precisa de um elemento de atração que brote da interação entre personagem e o que a direção constrói dessa conexão, e dessa experiência. As Linhas da Minha Mão é um filme cuja respiração de sua protagonista, seus trejeitos, sua epiderme, tudo está acessível para uma sessão de mergulho em um problema social dos mais desprezados, ou mais precisamente escamoteados. Viviane vai nos colocando a par do tanto que tem de deusa, louca e feiticeira, estritamente com cada uma dessas palavras em suas acepções literais. O fascínio que sai de sua história contada nos faz refém mais uma vez da máxima do Cinema, que é o ato de contar histórias que herdamos de nossos antepassados, ao redor das fogueiras.
Ao não interromper sua interlocutora e permitir que sua narrativa particular atravesse períodos de tempo inestimado, Dumans corrobora por essa fabulação respeitosa, a uma mulher que é silenciada por todos os seus vieses. Nesse sentido, As Linhas da Minha Mão é um alicerce a uma linguagem que se pensa também enquanto cinema maiúsculo, em sua manufatura. É abertura, estranhamento e possível perda, apresentação de plot, construção de clímax, e sua posterior resolução. Além disso, ainda permite que uma brecha se abra em direção ao faz de conta de maneira mais direta, respeitando a máxima também do veículo; é tudo verdade? Em um documentário em primeiríssima pessoa, de substância a princípio questionadora a respeito de seus códigos tradicionais, que o filme abrace uma fórmula para se estabelecer em um protótipo que ressignifique ambos (obra e formato), é um achado, e uma senhora realização.
Um grande momento
Viviane e Douglas
[26ª Mostra de Cinema de Tiradentes]