- Gênero: Drama
- Direção: Kenneth Branagh
- Roteiro: Kenneth Branagh
- Elenco: Jude Hill, Lewis McAskie, Caitriona Balfe, Jamie Dornan, Judi Dench, Ciarán Hinds, Josie Walker, Freya Yates, Nessa Eriksson, Charlie Barnard
- Duração: 98 minutos
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Kenneth Branagh tem uma visão fabular da própria infância, ou ao menos tentou em sua porção cinematográfica elevar os momentos mais cândidos e varrer para debaixo do tapete as questões mais proibitivas. Nasceu assim uma visão genérica de uma situação extremamente pessoal, seu Belfast, indicado a 7 Oscars – porém muito menos do que poderia, caso tivesse sido verdadeiramente abraçado – é uma apologia à memória, porém com ênfase na afetiva e diminuindo a visão crítica que um adulto poderia angariar com seu próprio passado. Se existiu alguma tentativa de tornar singular sua versão dos fatos acontecidos entre 1969 e 1970 na região onde morava, isso ficou na intenção.
O que transborda da visão de Branagh para os eventos que ele mesmo vivenciou e que exploram os embates civis entre católicos e protestantes nas ruas onde morou é uma edulcoração dessa mesma luta, que – tirando a cena de abertura – raramente tenta alcançar algum sintoma de urgência em cena. Pelo contrário, toda a ambientação do autor é procurada por uma certa diminuição da seriedade, sempre que algum conflito se aproxima. O filme não permite um olhar menos adocicado sobre tudo o que se propõe a debater, sejam os conflitos campais, seja a erosão do casamento dos pais, seja a doença do avô e seus desdobramentos, o filme parece se esconder dos problemas reais, como se o preto e branco de sua fotografia desse conta de tanta aflição ao redor.
Um sem número de filmes já foi feito no esquema “o mundo visto pelos olhos de uma criança”, e os resultados têm diferentes tons, abordagens e resultados. Do Fanny e Alexander de Ingmar Bergman ao Jojo Rabbit de Taika Waititi, passando por Império do Sol de Steven Spielberg, muita coisa pode ser concluída a partir dessas experiências, e se Branagh não ridiculariza conflitos como Waititi desastrosamente faz com a Segunda Guerra Mundial, ele também parece se preocupar muito pouco com o seu entorno. A crise que eclodiu em Belfast não tem gravidade estética para além de movimentar a vida de Buddy e sua família, que eventualmente dançam pelas ruas do bairro como se a vida fosse uma eterna festa, mesmo que essas ruas estejam loteadas de olheiros querendo sua participação direta nos eventos.
A produção não consegue criar, acima de tudo, uma atmosfera reconhecível do ponto de vista da normalidade, ou do naturalismo, mesmo querendo beber vez por outra dessa vertente. Por isso a alcunha de fábula é a que melhor veste Belfast, um filme que joga tanto de um lado humanista – toda a relação de Buddy com os avós, que é a melhor fatia do filme – quanto para uma linhagem mais espetaculosa – a forma como o filme transforma as madrugadas pós-confronto em algo grandioso, com imagens que o cinema vendeu para o espectador assemelhadas a um campo de concentração, com seus ultra refletores, cercas de arame farpado e tochas flamejantes, em escolhas de espetacularização evidente.
O filme segue nesse impasse entre ser um retrato muito íntimo de uma vida familiar que segue em plena efervescência mesmo diante da repressão e da morte, e uma tentativa vã de construir um painel da época que nunca se fortalece pela História, mas pela construção diminuta de seus personagens em cena. A visão que o filme tem da singeleza que Buddy vive, em meio a todos os impasses que sua cidade vive em paralelo a ele, também não constroi base de sustentação, mesmo com a paleta de tintas repleta de carinho. São retratos instantâneos que não revelam muita coisa além do que o filme pondera naquele exato momento, sem criar uma costura coesa para um artesanato que não se preocupa com o todo, mas só com suas fagulhas fugazes.
Mesmo cenas potencialmente instigantes, como o baile onde o Pai canta “Everlasting Love” para a Mãe, soa vazia em meio a uma montagem que não consegue criar uma progressão ao filme; vazia e particularmente falsa, deslocada e evidenciando uma escalação equivocada de dois atores que não parecem fazer parte do contexto geral, esteticamente falando. Se Ciaran Hinds e Judi Dench entregam absoluta adequação, com seu entorno e na relação que constroem entre si e estão constantemente propondo reflexão sobre o que está acontecendo com suas interpretações e suas marcas do tempo em seu rosto, Caitriona Balfe e Jamie Dornan surgem como figuras etéreas em suas belezas descomunais.
Belfast, projeto tão acalentado de Branagh para contar mais do que sua própria criação enquanto artista, mas também tentando traduzir seu patriotismo, fica no meio do caminho e acaba por não privilegiar nenhuma área de leitura, além de incorrer em clichês ultrapassados como os relacionados a gangsterismos locais. É como se todas as intenções não o tivessem feito perceber como o excesso de situações conflitantes, narrativa ou imageticamente, atravancou seu resultado final, pesando o todo. Intercalando momentos bonitos e sinceros com outros bem artificiais e rasos, parecendo forçar uma grandiloquência que não pode ser simplesmente enfiada a força na produção, Branagh tem um filme na sua cabeça (e provavelmente no seu coração), e um bem diferente na tela.
Um grande momento
A Shangri-lá da vovó