Crítica | Catálogo

Muribeca

Retomar os espaços

(Muribeca , BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Alcione Ferreira, Camilo Soares
  • Roteiro: Alcione Ferreira, Camilo Soares
  • Duração: 77 minutos

O Conjunto Habitacional Muribeca, situado na região metropolitana do Recife, não era apenas um espaço de moradia para um grupo de pessoas. Em cartaz a partir de hoje nos cinemas, Muribeca descortina um apagamento de muitas instâncias; não é só o espaço geográfico que está ficando para trás, mas o espaço de troca, de experiências, de afetos. Também a perceber que não apenas um buraco espacial se abre, mas especificamente um lugar de rememoração do indivíduo. É quando percebemos que as máquinas provenientes estatais não estão desalicerçando somente o concreto, mas principalmente as histórias de cada um de seres enclausurados em uma realidade de reiterativas perdas. 

Dirigido por Alcione Ferreira e Camilo Soares, o filme transita por camadas particulares, que unem documentário mais tradicional com uma espécie de experimentalismo afetivo, com uma colagem de imagens que estão vivas e parecem acontecer agora, enquanto escrevo o texto, mesmo captadas há alguns anos atrás. Isso acontece porque Muribeca trafega por caminhos de permanência e também de desaparecimento, com o recorte temporal sendo apreendido pela subjetividade. Essa dualidade entre uma espécie de passado e um presente que já também é mais, é um dos fascínios da construção narrativa e imagética aqui, que passeia por entre momentos distintos para encontrar ecos históricos entre os dois tempos. 

Muribeca
Alcione Ferreira

É como assistir a uma casa assombrada, inabitada, mas que ainda contém potencial tanto de provocar desespero quanto de nos fazer acessar memórias de um passado sob os escombros. Aos poucos, a luz que vai sendo jogada sob aquelas imagens, e que tentam restaurar o que o outro tempo reflete, mostram que por trás de cada vazio, reside uma narrativa, cada vão desconhecido esconde um percurso que tentou ser apagado. A montagem de Paulo Sano faz essa ponte entre dois mundos, um habitado e cheio de sonho e o outro em processo de invisibilização progressiva, com isso promovendo tanto um sopro de luz no silêncio, quanto resguardando melancolia a uma história de luta e resistência. 

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É um movimento contínuo que Ferreira e Soares promovem ao olhar para as imagens que geraram e se apropriaram, em Muribeca. Esse sentimento de constante renovação de proposta, ao mudar de foco de um lado fulgurante e esperançoso, para as sombras que restaram após a tentativa de tornar minúsculo um estado de espírito, é de muita verdade estética e cênica. Não é um trabalho necessariamente fácil de acessar, ou uma experiência simples de conexão, mas é uma vitória verdadeiramente coletiva que temos ao acessar um grupo de pessoas com vidas tão extraordinárias quanto quaisquer outras. Uma ode a um modo de sobrevivência possível, aquele onde ainda geramos imagens sobre o que nos avassalou de maneira permanente. 

Foto de Muribeca
Alcione Ferreira

Olhar para as vozes e ver seus rostos é muito importante para entendermos a importância de Muribeca, que é apontar realmente quem perdeu com todo o processo. Ver tais trajetórias tornando-se mumificadas com a desassociação permanente é entender o processo do início ao fim, e compreender a quem o Estado está prejudicando. Ainda que as imagens construídas pelos diretores na região que um dia foi convivência sejam de potência inegável, não é possível esquecer o que aconteceu para que tais planos sejam conseguidos e reverberados. Entender aquele espaço, suas ruas desertas e suas paredes órfãs, é também empatizar com quem contou todas as histórias sobre aquele lugar, e perceber seu ímpeto de resistir e continuar. 

Um grande momento

Perseguir o interior vazio 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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