(Berlin Alexanderplatz, ALE, HOL, FRA, CAN, 2020)
Há 40 anos atrás, um dos maiores cineastas alemães da História, Rainer Werner Fassbinder, adaptou um clássico lançado 50 anos antes, “Berlin Alexanderplatz“. Escrito por Alfred Döblin, o romance foi considerado um dos marcos do expressionismo alemão e era considerado infilmável pela quantidade de conteúdo abarcada no original, o que Fassbinder respondeu com uma minissérie de mais de 15 horas de duração mantendo as bases originais. O jovem diretor alemão de origem afegã Burhan Qurbani é bem mais modesto em sua nova versão do romance, transformando um material em 3 horas bem compactas, que deixam claro o enxugamento da narrativa.
Além disso, Qurbani atualizou ao máximo os conceitos da narrativa original, trazendo a imigração política pro centro das discussões. Franz, agora, é um africano que veio de bote pra Alemanha, e no caminho já sofreu a primeira de suas muitas tragédias, aí sim como na tradição do livro. Mas ao atualizar seu contexto político e ampliar as atmosferas de discussão, o diretor tenta tornar a obra uma peça jovem, com ideias e ideais modernos, uma visão contemporânea sobre um conceito de romance que se entende defasado em matéria de debate.


Ao realizar sua própria obra, no entanto, Qurbani conserva os motes e as motivações das personagens, que são particularmente clássicas. Com isso, não é tudo que funciona a título de modernização, parecendo por vezes forçadas as intenções de avançar para o hoje nas contextualizações, enquanto outras parecem encaixar perfeitamente em qualquer tempo, sem soar anacrônicas. A questão dos refugiados em seu protagonista, por exemplo, talvez seja a decisão mais óbvia, ao mesmo tempo que mais soa potente em tela; tudo estava pronto para esse novo Franz vivido de maneira feroz por Welket Bungué (de Corpo Elétrico).
A forma libidinosa que corre por todas as relações, sejam entre homens e mulheres ou entre pessoas do mesmo sexo, também é um dado positivo de Berlin Alexanderplatz. Existe o mundo do crime que invade aquelas pessoas e seus desejos e quereres, mas também existe paixão, sexo, carne pulsante… que se desenrola e desenvolve pra situações de poder, da forma como o dinheiro se insere na vida das pessoas, dos excessos cometidos. Em determinado momento, está tudo intrinsecamente ligado, como está mesmo na vida real, e fica borrado o que cada fatia dessa representa em cada uma das personagens, que se amam, se odeiam, se beijam, e desejam umas às outras, além de desejarem coisas, e se tratarem como coisas, e se tornarem coisas.


O problema é que nem tudo conseguiu alcançar a textura que permitiria à obra transitar entre espaços-tempo. Se toda essa interação carnal é visível, a verbal permanece muitas vezes enraizada no original, além da própria estrutura cênica, que é amarrada por soluções quase shakespearianas de tratamento interpessoal, soando engessadas e arcaicas com alguma frequência. São declarações e movimentações quase teatrais, que se trazem uma estranheza charmosa, também trazem um deslocamento temporal por vezes surreal, como personagens que ouvem diálogos escondidos em cenários e cenas que se desenvolvem de maneira a encenar um vaudeville; nem sempre acontece organicidade no todo.
Para um projeto de 3 horas de duração, Berlin Alexanderplatz mantém ritmo e interesse do espectador por dividir seus blocos de eventos de maneira literária (mas que funciona, de alguma forma) e por criar uma atmosfera com algum lirismo em cima de delírios do protagonista, e mesmo das cenas coloquiais. Qurbani tem ambição em suas imagens, consegue compreender seus espaço físico, filma com elegância e não exacerba em tiques (o neon, por exemplo, tem uso muito comedido, principalmente na realidade atual do cinema, onde o recurso está sendo multiplamente explorado). Resta uma elegante ascensão e queda no mundo do crime com tintas misturadas, o novo e o velho representados o tempo todo nessa narrativa longa.
Um grande momento
O primeiro assalto